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Médicos brasileiros se unem – mas por uma causa execrável

Por Bajonas Teixeira de Brito Junior (*) | 03/06/2013 09:09

“Por que não se uniram num projeto que direcionasse médicos recém-formados, muitos deles filhos de médicos, a um estágio de, ao menos, cinco anos nas cidades mais pobres do interior do país? Parece que isso nem de longe lhes ocorre”

Os médicos brasileiros nunca se uniram numa cruzada em favor da saúde da população brasileira; não se uniram para promover uma campanha de combate implacável à dengue; não se uniram em massa para derrubar o poder dos planos de saúde; não se uniram para combater a precarização da saúde pública; não se uniram para formular um plano nacional de redução da mortalidade, seja a infantil ou a adulta; não se uniram jamais por uma causa cuja dignidade pudesse manchar os seus jalecos brancos e a sua soberba de classe. Mas para criar entraves ao acesso das populações mais necessitadas e esquecidas do interior ao atendimento médico de qualidade, reagem indignados e fazem uma cruzada nacional. Médicos, estudantes, professores, centrais sindicais, representantes das associações, e, ainda, os conselheiros (regionais e federais) mostram, pela primeira vez, a classe médica exibindo uma solidariedade férrea.

Por que não se uniram num projeto que direcionasse médicos recém-formados, muitos deles filhos de médicos, a um estágio de ao menos três anos nas cidades mais pobres do interior do país? Parece que isso nunca foi cogitado.

Acordei neste sábado (25 de maio) ouvindo o bordão da caminhada dos “caras-pintadas da saúde”: “Dilma não traga curandeiro, respeite o povo brasileiro”. O atendimento médico no país é tão precário que a designação “caras pintadas” ironiza a si mesma. Ela nos faz pensar que o mais correto seria “caras pintadas da enfermidade”. Ou “caras pintadas do descaramento”. E por falar nisso, na carta aberta enviada à presidente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) diz que, dentre outros perigos, a vinda de médicos estrangeiros “coloca a qualidade da assistência à população em situação de risco”.

A frase parece uma obra-prima do ato falho. Ao invés de afirmar que a população será colocada em situação de risco, o CFM diz que a “qualidade da assistência” será posta em “situação de risco” com a vinda dos “médicos estrangeiros”. Se essa qualidade está hoje, como todos sabem e lamentam, muito aquém do desejado, que risco ela corre com a vinda dos médicos cubanos? Seria o de que a chegada desses médicos, referência na medicina social em toda a América Latina, desacredite ainda mais a “qualidade da assistência” médica prestada no Brasil? Que outro motivo teriam para chamar os cubanos de “curandeiros” se, como bem sabem, eles formam a elite da medicina nesta parte do continente? Maradona, lembremos, não veio se tratar no Brasil. Foi para Cuba. Pois é. Um ato falho muitas vezes revela o pânico inconsciente.

Imagine-se que nas periferias das grandes cidades, a população que hoje recebe péssimos serviços médicos, públicos e privados, começasse a ouvir dizer que nas áreas mais pobres do país, naquelas vilas esquecidas do interior, por onde nenhum médico passava sem travar a portas e fechar bem os vidros de suas pick-ups, acelerando as reluzentes latas de luxo, há agora médicos que aceitam morar em casas muito simples, que não fazem cara de asco diante da miséria, que não chegam com horas de atraso sem dar uma desculpa, que são atenciosos, que ouvem com a maior atenção as queixas dos seus pacientes e que, pasmem, além de tudo isso, são muito competentes. Essa notícia, alastrando-se seria uma tragédia para o nosso corpo médico nacional. Talvez ele até adoecesse. É o vírus da competência e da dedicação, diminuto, é verdade, mas potencialmente letal, que dissemina o pânico na cabeça do corpo médico brasileiro.

Ora, por que será que a Unimed e os outros mega-planos, que não podem deixar de ter influência no CFM, querem barrar a vinda dos modestos médicos cubanos? Será que temem que, com a chegada desses médicos e sua proverbial dedicação e eficiência, a população comece a compreender o que é a medicina quando praticada com abnegação e competência? Será que o medo é o de que se descubra que a medicina pública pode ter um desempenho de alto nível, muito superior ao nosso sistema privado? É o que somos levados apensar, porque do ponto de vista material e financeiro, o reduzido número de médicos que chegariam (fala-se em seis mil, ou pouco mais) nenhum prejuízo poderia lhes causar. Só para considerar um dado: o déficit acumulado na última década é estimado em 54 mil médicos. Que mal então poderiam causar 6 mil médicos que viriam atender populações em localidades para onde nossos dedicados médicos não querem ir?

O Brasil possui 1,8 médicos para cada mil habitantes, enquanto a Argentina, e isso é muito elucidativo, tem 3,2 médicos, quase o dobro. Esse fato já seria desolador. Ocorre que em Cuba a relação é de 6,4 médicos por mil habitantes como informa o Correio Braziliense, que ninguém dirá ser um órgão de propaganda da esquerda. Cuba possui cerca três vezes e meia mais médicos por habitantes que o Brasil. Não é uma coisa muito interessante? Além disso, continua o Correio Braziliense, Cuba “é referência internacional nas áreas de neurologia, ortopedia, dermatologia e oftalmologia”. Pois é, esses são os “curandeiros”. E vale observar que o jornal esqueceu de dizer que Cuba é também referência internacional na área de medicina social. Que tipo de preconceito leva os médicos a chamarem de “curandeiros” profissionais tão sérios e preparados como são os cubanos? Seria o caso de um duplo preconceito: contra um país pobre e uma população negra?

A questão da qualidade não deve ser confundida com a do caráter moral, a competência ou o talento dos médicos individualmente considerados. Como estamos assinalando, há um sistema que envolve aspectos diversos: a predominância da medicina privada para vastos setores do país; a qualidade absurda do sistema público; a concentração dos médicos em certas regiões e estados; o abandono das áreas mais interioranas; a exploração dos clientes e dos profissionais pelos planos de saúde, etc. É esse sistema que gera as distorções mais alarmantes e é ele que deve ser mudado.

Considere-se, por exemplo, aquele grupo de bons médicos do SAMU de Mogi das Cruzes na capital paulista, que, com seus dedinhos mágicos de silicone burlava o ponto eletrônico e extraía diariamente dos cofres públicos uma porção das verbas da saúde equivalente a sete profissionais quando, na verdade, apenas um comparecia, e só para “assinar”? É claro que eles não representam a classe médica, mas são um exemplo muito expressivo dos riscos do sistema de saúde que temos.

É isso que nos faz perguntar, ao ler a carta aberta do Conselho Federal de Medicina: a “qualidade da assistência” médica prestada à população brasileira — seja pelo SUS, seja pelos planos de saúde, pelas clínicas particulares ou consultórios médicos — precisaria aguardar a vinda dos médicos estrangeiros para entrar em “situação de risco”? É bem possível que não.

Uma boa parcela dos médicos é hoje explorada pelos planos de saúde, embora não tanto quanto o são os clientes desses planos. Mas por que esses médicos não se uniram, por que os alunos dos cursos de medicina, os sindicalistas, os conselheiros não pintaram a cara antes para extinguir os planos mas, ao contrário, com uma ou outra exceção, com subserviência notável, os vêm servindo fielmente? Sim, é verdade que nos últimos anos percebe-se uma tendência à rebeldia, com muitos profissionais optando pelo descredenciamento. Contudo, essa revolta não pleiteia uma reestruturação do sistema de saúde mas deseja, meramente, engordar um pouco a merreca que os planos estão pagando aos médicos cooperados.

Nos últimos tempos, para quem tem o plano da Unimed, por exemplo, ao ligar para marcar consulta, é comum escutar um seco e ríspido “não trabalho mais com a Unimed”. Esses médicos não querem saber, sequer cogitam, que tenham alguma responsabilidade com pacientes que acompanharam durante anos. Isso não existe nessas cabecinhas e nessas caras pintadas. Além do mais, falam com os ex-pacientes com uma aspereza que indica bem que, sacaneados pelos planos de saúde, procuram se vingar no cliente do plano, esquecendo que esse também é vítima dos planos.

É evidente que muitas vidas são salvas diariamente pelos médicos, mas esta é a finalidade da sua profissão. Os salva-vidas num final de semana no verão, principalmente nos domingos, salvam muitos suburbanos nas praias do Rio, como escreveu Rubem Fonseca. Isso não significa, contudo, que recaia sobre eles uma admiração especial, mesmo que façam um ótimo trabalho. Mas no caso dos médicos brasileiros não estou certo de que façam um ótimo trabalho. Não se costuma ver aqui, como acontece no exterior, salas de consultórios forradas de livros, tratados de medicina abertos sobre as mesas, nem sequer algum número das diversas revistas da área de especialidade do doutor, ou qualquer outra pista sobre o interesse do médico na atualização da profissão. O que se vê é um consultório decorado como um escritório de contabilidade, e médicos que se sentem satisfeitos com a sua própria generosidade quando, ao final da consulta, dão uma amostra grátis, como um souvenir, para o paciente.

Certamente que, entre os médicos, como entre todas as profissões do país, existem os que fogem ao que vem se tornando a regra. Conheço alguns e sei que todos podemos sem dificuldade apontar profissionais talentosos e dedicados, no entanto, ao ler os jornais é difícil não concluir que, na média, a situação hoje é lamentável.

É doloroso assistir ao obscurantismo, a ausência de idealismo comunitário, a recusa teimosa em seguir para o interior do país. Embora muitos médicos tenham se proletarizado nos últimos anos, com a concorrência produzida com a concentração quase exclusiva nas grandes cidades, a maioria não cogita em hipótese alguma de ir para onde a população vegeta ao deus dará sem cuidados médicos. Houve o tempo do projeto Rondon, iniciativa da Ditadura para prevenir novos focos de guerrilha rural, que se encerrou já na novíssima república, em 1989, em que centenas de milhares de estudantes, uma grande parte deles formada por estudantes de medicina, foram enviados para o interior. Quantos voltaram para lá depois de formados? Nenhum.

Mas se até a classe média é tão maltratada nos consultórios (tenho experiência de décadas com a Unimed e a Amil), o que não acontecerá com a população pobre e, muito mais, com os negros, nos consultórios do SUS? O médico brasileiro tem um aguçado sentimento de superioridade, baseado no fato de que continua sendo a profissão de maior procura nas universidades federais (e provavelmente também nas estaduais e nas privadas), de maior nível de pontos nos vestibulares, etc. Além disso, é uma profissão que se veste de branco (não nos consultórios, é verdade, onde cada um se veste do jeito que bem entende, o que é um erro), e que por isso se sente mais pura, mais sacra, e muito dedicada a essa nobre profissão que, no fundo, é um sacerdócio. Mas um sacerdócio que se sente melhor no luxo das grandes cidades.

Poderia concluir esse artigo relatando muitos casos de erros de profissionais da saúde absurdos, pelos quais familiares meus passaram. Poderia me referir a casos indiscutivelmente criminosos e, ainda, a outros, que se poderia qualificar como “apenas” de negligência vergonhosa. Mas seria perda de tempo. Basta abrir os sites de notícias para encontrar inúmeros casos que exemplificam a tese. Recentemente, apenas para citar um caso fantástico, mas que parece ser emblemático a respeito do que pode acontecer quando, numa sociedade complexa, o exercício da medicina se pauta, sobretudo, pela lucratividade, tivemos o pavoroso episódio da médica carniceira Virgínia Soares, muito qualificada e competente na limpeza de UTIs. Há indícios de ter assassinado 317 pacientes.

Seria possível que essa prática perdurasse por longo tempo sem a cumplicidade de outros colegas da médica? Parece que não. Tanto que outros três médicos foram presos por suspeita de cumplicidade algum tempo após a prisão de Virgínia Soares. Mesmo não havendo atuação direta, apenas o silêncio já seria cumplicidade o bastante para nos deixar estarrecidos. O índice de mortes dos pacientes tratados pela médica era de 90% e os dos seus colegas 13%. Como podiam ignorar o que estava acontecendo ao seu lado? Impossível. Essa cumplicidade no horror é algo profundamente desconcertante. Tudo leva a crer que temos ai um indício de chegamos ao extremo na “qualidade da assistência” na área da saúde.

Certamente que temos muitos profissionais médicos conscienciosos, dedicados, extremamente bem preparados. Mas esses não se escandalizam com a vinda dos médicos cubanos. Ao contrário, por serem mais informados e terem interesse na medicina social, sabem que Cuba está anos luz na nossa frente nesse terreno. E é engraçado: conseguiu isso sem possuir sequer uma Unimed, uma Amil (sigla de Assistência Médica Internacional) ou uma Golden Cross (Cruz de ouro). Surpreendente, não?

O Brasil por sua vez, deve continuar a ser o país 0.0 (zero ponto zero) se isso depender dos seus médicos. Pelo que a experiência tem mostrado, Dilma muito facilmente se dobrará as pressões dos médicos. Sob a capa de “presidente durona” e carrancuda, se resguarda um verdadeiro coração de mãe quando os requerentes tem poder na sociedade brasileira. É verdade que Dilma é durona com os pobres, aprova a intervenção policial e o exército nas favelas, a retirada a força de estudantes das universidades, de manifestantes populares das ruas, dos canteiros de obras das empreiteiras, dos prédios públicos, como se fez com os índios violentamente removidos do (que ironia malévola!) Museu do Índio no Rio de Janeiro.

Que Dilma é durona com os pobres, basta ver pela drástica redução que operou nos assentamento da reforma agrária e na demarcação de terras indígenas. Mas e com as elites? As obras da copa em particular, e as obras do PAC em geral, as concessões para as empreiteiras, os carinhos bilionários para Eike Batista, tudo isso parece comprovar que, para os ricos, Dilma é um amor de criatura, simpática, sorridente, meiga e compreensiva. Contudo, se meu prognóstico estiver errado, e nunca torci tanto para estar errado, começarei a ter alguma expectativa de melhora desse governo. Mas essa chance me parece muito remota.

Na carta aberta enviada a Dilma, o Conselho Federal de Medicina fala em seu “engajamento histórico” em favor “do interesse público, da prática da boa medicina, da oferta de serviços de saúde de qualidade e do aprimoramento do Sistema Único de Saúde (SUS)”. É estranho imaginar como, com todo esse engajamento nas causas nobres, o Conselho não conseguiu nenhum resultado para mostrar ao país. Se tivesse conseguido, estamparia em letras garrafais na sua Carta. Mas não o fez porque se de suas ações resultou algo, certamente não foi em benefício da população. Ao contrário, as coisas só pioram. E não temos notícias de protestos contundentes do CFM contra a degeneração perpétua dos serviços públicos de saúde. Não fez campanha contra o INPS, o INSS, nem agora contra o SUS. Nem diz nada hoje, quando o descalabro ampliou suas fronteiras atingindo a classe média, com o sistema privado de saúde, os planos, passando por um processo de susficação, se podemos usar aqui um neologismo, do sistema de saúde privado.

O serviço dos planos de saúde se torna cada vez mais caro e, ao mesmo tempo, mais precário para a classe média. As consultas ficam cada vez mais distantes. Quem imaginaria, por exemplo, que precisaria, pagando um plano médico, esperar quase dois meses pela consulta a um oftalmologista? Recentemente vivi uma dessas experiências insólitas. Esperei mais de uma hora a chegada de um oftalmologista. Quando ele, finalmente me atendeu, me receitou um colírio lubrificante, me deu uma amostra grátis e me despachou. Tudo isso em cerca de três minutos… Ora, se um episódio desses aconteceu com um plano de saúde caro, o que não acontecerá diariamente na rede pública?

As clínicas particulares ganham muito, o que percebemos por suas reformas, ampliações, mudança de decoração, etc. Mas a prestação de serviços de saúde só piora. Tudo leva-me a crer que, no momento presente, o péssimo está em vias de tornar-se aterrador. É só observar as matérias sobre descredenciamentos de médicos pelo país que ponho a seguir. Observe-se a Sociedade Cooperativa de Trabalho Médico (Unimed) que, por ser o maior plano de saúde do país, servirá por certo para ilustrar para onde caminha a assistência privada no país. Eis algumas poucas matérias, o leitor encontrará muitas outras se fizer uma pesquisa na internet:

(*) Bajonas Teixeira de Brito Junior é Doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. É coordenador da revista eletrônica Revista Humanas e professor da UFES.

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