Negro pasteurizado
Em sentido figurado, pasteurização, é um termo que se aplica bem à prática de tratar o negro como um ser desprovido de personalidade própria, virtude ou traço distintivo de originalidade. Quem é preto ou pardo sabe que é muito comum ser confundido com outra pessoa negra —independentemente da aparência física de cada um. Jocosamente, apelidei essa prática de "pasteurização da negritude". Por incrível que pareça, uma crença bastante comum no imaginário coletivo leva à presunção de que "negro é tudo igual". Só que não!
A população negra (do planeta, em geral, e do nosso país, em particular) é bastante plural e diversa. Contudo, a dificuldade de distinguir sujeitos diversos entre si —para além da similaridade de traços fenotípicos como a cor da pele e a textura do cabelo— é a reverberação contemporânea da objetificação do negro. Coisa que se comunica diretamente com a negação da humanidade dos africanos escravizados e traficados como uma mercadoria, aos quais até o direito a manter o próprio nome foi negado.
Sociologicamente, também explica o índice absurdo de erros cometidos por sistemas de identificação facial quando a suspeição recai sobre um sujeito não branco. No Brasil, a margem de erro nos casos de reconhecimento facial de pessoas negras incriminadas é superior a 80% (Defensoria Pública da União). No plano internacional, estudos apontam para taxas de erro até 100 vezes maiores para pessoas negras, indígenas e asiáticas na comparação com o que se dá com pessoas brancas incriminadas (National Institute of Standards and Technology - NIST).
O nível de "pasteurização do negro" é tão absurdo que chega ao ponto de fazer com que muita gente confunda até os pretos e pardos com os quais convive rotineiramente nos mais diversos ambientes, inclusive no trabalho. A despeito da visibilidade ou da condição social e econômica, o racismo é implacável na negação da individualidade negra.
(*) Ana Cristina Rosa, jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.