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No modelo petista, a saúde não tem remédio

Por José Serra (*) | 27/02/2015 06:21

Acredite se quiser: a emenda constitucional que foi aprovada pelo Congresso, há duas semanas, não trouxe nenhum benefício para a área da Saúde no Brasil. Pelo contrário: dentro de suposições realistas, essa emenda retirará recursos do setor, comparativamente ao que seria obtido com a legislação vigente, que será extinta no ano que vem. Essa legislação contempla um piso anual dos gastos federais em Saúde equivalente ao orçamento do ano anterior mais a variação nominal do PIB, ou seja: produto real mais inflação. A isso se acrescentariam os recursos extras dos royalties do pré-sal e o incremento proporcionado pelas emendas parlamentares “impositivas” destinadas à Saúde.

Pois bem: a nova legislação, que vincula a despesa federal de Saúde à receita corrente líquida da União, numa escadinha que dura cinco anos, desconta desse montante os royalties e as referidas emendas. Assim, em números acumulados, o cenário B implica reduzir o gasto federal em R$ 21 bilhões em relação ao que se realizaria no cenário A. Somente em 2016, seriam R$ 10 bilhões a menos. Vale uma paráfrase do teatro shakesperiano: tanto barulho por (menos do que) nada! Ficou evidente que muitos parlamentares foram usados pelo governo como inocentes úteis. Talvez ele se deem conta, agora, quão tortos são os caminhos da administração petista na Saúde.

Os antecedentes nesse sentido são robustos. Os governos do PT esperaram 11 anos para regulamentar a emenda constitucional que aprovamos no começo da década passada. Sob forte pressão elevaram os recursos federais para a Saúde, desde 2003, mas pouco. Basta lembrar que, durante o segundo governo FHC, a taxa de crescimento dos gastos reais no setor correspondeu ao dobro da taxa de crescimento do PIB, enquanto, na era petista, essa proporção caiu à metade! Mais ainda, os governos Lula e Dilma assistiram, fem 2002 para 44% em 2014, forçando Estados e municípios a bancar a diferença.

As artimanhas utilizadas contra a Saúde foram simples: a) reajustar lentamente as transferências do Ministério da Saúde aos estados e municípios; b) abrir grandes defasagens na tabela de pagamento do SUS aos prestadores de serviços, sufocando toda a rede de Santas Casas e demais hospitais filantrópicos; c) encolher em 30% os aportes federais às equipes do Programa de Saúde da Família dos municípios, grande inovação do governo de FHC; d) criar vários programas municipais, como o Samu e as UPAs, mas deixando o elevado custeio por conta dos municípios.

Mais recentemente, nasceu a serpente, cujo ovo foi depositado no primeiro governo petista e chocado até o fim do terceiro: o atraso nos repasses de recursos do SUS, coisa que não acontecia havia mais de 20 anos! Esse método perverte a qualidade dos prestadores de serviços e rompe os padrões de lealdade e eficiência que devem prevalecer entre União, estados e municípios.

Paralelamente turbinou-se uma caudalosa fonte de despesas indiretas: a despreocupação com custos, a falta de planejamento e prioridades claras, o uso do patrimônio público em benefício privado e a corrupção. Tudo isso permeado, é claro, pelo desconhecimento, inépcia e acessos de burrice na administração. Nenhum desses defeitos — os dolosos e os culposos — é novo na vida pública brasileira, mas há que se reconhecer que, na era petista, eles foram alçados à condição de método de governo.

É significativo lembrar que, no final do governo FHC, 14 de cada 15 brasileiros não consideravam ser a saúde o principal problema do país, enquanto, no fim do ano passado, quase a metade das pessoas colocava o setor em primeiro lugar em sua lista de angústias. Aliás, 3 de cada em 5 brasileiros aprovavam, em 2002, a política nacional de saúde (IBOPE), proporção que caiu a menos de um quinto em 2014.

Até a campanha contra a Aids, considerada a melhor do mundo em desenvolvimento na virada do século, foi enfraquecida, e os tempos piores estão voltando. A evolução da incidência sobre os jovens homossexuais de 13 a 29 anos tem sido assustadora. Os bem sucedidos mutirões de exames e cirurgias eletivas foram desativados, pois tinham marca tucana. Os genéricos também traziam o selo do governo do PSDB: por isso, deixaram de ser prioridade.

Já escrevi nesta coluna que uma das principais antileis petistas na administração pública é a de transformar facilidades em dificuldades e soluções em problemas — às vezes, por ideologia; noutras, amadorismo ou neuroses. Ou coisa pior. A Agência de Vigilância Sanitária, nos últimos 12 anos, foi pervertida em razão de um propósito adicional: criar dificuldades para vender facilidades. Em 2002, a aprovação de um novo genérico pela Anvisa demorava 5 meses; em 2014, 30! E o que dizer da da Fundação Nacional de Saúde, esfrangalhada pela partilha política e pelos malfeitos à luz do dia?

Há falhas menos citadas, mas igualmente aberrantes. A desaceleração da implantação do Programa Saúde da Família e a piora da manutenção das equipes existentes levaram ao “Mais Médicos” dos marqueteiros , que, além de pouco efetivo, cindiu a relação do poder público federal com os profissionais de saúde. O cartão SUS, cuja preparação estava em andamento, foi desativado. O ressarcimento ao sistema pelos planos de saúde cujos associados usam unidades públicas jamais foi eficazmente implantado.

Há remédio, sim, para cada um desses males da saúde. O que não tem cura é a soma explosiva de incompetência e má-fé. E por onde começar? Os brasileiros afeitos à área — médicos, líderes de entidades, secretários, profissionais de saúde os mais variados — têm de travar a luta política. O PT cravou no Brasil um bordão obscurantista, segundo o qual até a aritmética é fruto da “vontade política”. É claro que não é. Mas é evidente que, sem vontade política, a verdade da aritmética corre o risco de ser substituída pela crença dos estúpidos. É hora de mobilização.

(*) José Serra é senador e ex-prefeito e ex-governador de São Paulo.

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