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O legado das práticas corporais negras

Rui Moreira (*) | 25/11/2020 13:36

O Brasil é o segundo país com maior densidade populacional negra do planeta, ficando atrás apenas da Nigéria, país do continente africano. É a maior diáspora africana. Contraditoriamente, aqui o racismo ainda é prática cotidiana em pleno século XXI. Isso persiste pela negação da classe dominante branca de que mais de 50% da população é preta e descende de africanos subsaarianos. A sociedade brasileira é resultado do hibridismo das culturas africanas, europeias, indígenas e, na atualidade, de muitos outros povos que aqui vivem.

Os processos diaspóricos africanos na América tiveram início em um êxodo involuntário provocado por vergonhosos processos de subjugação humana que não geram orgulho a ninguém. A história, a partir daí, foi contada com apagamentos que ocasionam às gerações afrodescendentes um distanciamento e um desconhecimento de sua verdadeira história, de sua ancestralidade. Foi permitido acesso apenas aos relatos dos colonizadores brancos que, por sua vez, omitiram as riquezas materiais, a nobreza dos reinados africanos subsaarianos e o reconhecimento da origem dos legados fundantes do conhecimento ocidental, uma vez que o continente africano é científica e comprovadamente o mais antigo do planeta. Nas Américas, e muito intensamente aqui no Brasil, cultua-se um orgulho soberbo de descender de colonizadores que promoveram terríveis genocídios contra os povos indígenas, a população negra africana e os seus descendentes. Isso é tão fortemente interiorizado, que os traços dessa visão hegemônica contaminam até mesmo quem se declara não racista ou se diz antirracista.

O racismo também está intensamente ligado ao direito de ir e vir do ser humano, pois ondas xenofóbicas contribuem para a proliferação de um “racismo ingênuo” ou “velado”. Essas características de nação precisam ser abordadas neste momento em que as revisões se fazem necessárias. Quando falamos de combate ao racismo ou ao fascismo, está implícito um câmbio de percepção de mundo que altera a consciência planetária.

As múltiplas identidades afrodescendentes são sempre temáticas oportunas quando estão em discussão cultura e sociedade. Na seara das artes em geral, as manifestações provenientes ou inspiradas no universo cultural negro não se limitam ao espetáculo alegórico. Uma explícita interferência dos processos sociais/políticos, a afirmação da valorização de cosmovisões específicas e exposição de convicções ideológicas acabam desenvolvendo formas de comunicação criativas e bastante peculiares. Na contemporaneidade, identificamos a tendência de que as matrizes culturais do Brasil sejam visitadas mais fluidamente, sem as ressalvas observadas em outros períodos geracionais. Isso vem proporcionando ampliação do desfrute das nuances culturais do povo brasileiro.

No universo da dança, do qual faço parte, está cada vez mais comum ver criadores e criadoras considerarem os legados culturais afrodescendentes e indígenas, mesmo que os processos educacionais estejam ainda fortemente ancorados na supervalorização de discursos canônicos eurocêntricos, sobretudo nos currículos universitários. Ainda não é fluido o estudo do conjunto de conceitos e práticas corporais que dialoguem com o exercício cultural e a produção de arte nacional.

As discussões de identidade que permeiam todo o planeta estão cada vez mais conduzindo as gerações a buscarem horizontalidade na ocupação de seus espaços de pertencimento. Negritude, crioulização, afrodescendência, africanidade, afrocentrismo, quilombismo, ubuntuidade, pan-africanismo são conceitos formulados a partir dos efeitos do espalhamento da população africana pelo mundo e, consequentemente, pela formação das múltiplas identidades negras do planeta. Elas traduzem ou influenciam diretamente as expressões culturais das nações diaspóricas e, por refluxo, também de algumas nações africanas.

Pelo prisma da cultura, neste momento, no Brasil, com o objetivo explícito de desvirtuar conquistas construídas, um desmonte estrutural acontece. Vai da extinção do Ministério da Cultura à nomeação para a Fundação Cultural Palmares – órgão estatal criado para cuidar das questões culturais negras – de um presidente que é de pele preta, porém racista e completamente desrespeitoso para com a história do povo negro no país.

O contexto brasileiro relativiza realidades, concentrando nas periferias as classes sociais economicamente desprovidas e situando dentre estas a “população negra”. Desse lugar, as pautas sociais são abordadas de maneira distinta pelo próprio poder público, que dirige sua interferência, muitas vezes valorizando atitudes preconceituosas contidas em parte da sociedade.

Insegurança pública, dificuldade com transporte público, precariedade na saúde pública, precarização das condições dos contratos de trabalho, dificuldade de acesso à educação básica e pública, sistema carcerário, descaso com espaços públicos para manifestações culturais populares, violência feminina, genocídio de jovens, aborto, dentre outras mazelas sociais, são normalizados como assuntos sem solução, pois “são inerentes aos pobres e aos pretos das periferias”. Em função desses fatos, é muito comum que os negros convictos de sua cultura e origem sejam incumbidos de buscar justificativas e evidências sobre os pontos de confluência dos traços da pluralidade identitária cultural do país. Ser brasileiro é ser americano do sul, afrodescendente, ameríndio, portanto não podemos esquecer que as questões dos negros, em países como o Brasil, são questões de toda a nação.

A arte sempre deverá significar um salvo-conduto para a expressão, livre de qualquer tratado étnico ou social, e não se podem desconsiderar os aspectos culturais dos indivíduos para discorrer sobre a manifestação das suas expressões artísticas. Há uma dívida histórica com a população negra, e ela só será paga se as gentes se comprometerem com o propósito de mudar o conceito que se tem de etnia.


(*) Rui Moreira dos Santos é brasileiro, artista da Dança com quatro décadas de atuação no cenário cultural mundial. Ativista pelo direito de fruição e amplitude social da cultura das artes, cursa graduação em Dança na UFRGS.

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