Preço de medicamentos e o dilema do prisioneiro
O preço de novas tecnologias pressiona os orçamentos de saúde em todo o mundo. Medicamentos, em particular, são o gasto em saúde com crescimento mais rápido. O instituto IQVIA aponta que 78% dos medicamentos oncológicos que entraram no mercado americano nos últimos cinco anos tinham um custo anual de mais de US$ 100 mil; e 60% mais de US$ 200 mil. Esse é um aumento significativo com relação ao período anterior.
Essa tendência de aumento nos preços de medicamentos fica muito bem ilustrada no Brasil quando observamos quais medicamentos já detiveram o título de “medicamento mais caro”. O medicamento Spinraza entrou no Brasil em 2017 custando R$ 240 mil por dose. À época, era a droga mais cara já registrada pela Anvisa. Em 2020, o título passa para o Zolgensma, ao preço de R$ 6,5 milhões. Em 2024, entra no mercado o Elevidys com o preço de R$ 12 milhões.
Novas tecnologias podem trazer inovações importantes para o tratamento de doenças e seu desenvolvimento envolve investimentos volumosos. Porém, é questionável se isso justifica esses patamares de preço. Existe ampla evidência de que não há correlação entre o preço cobrado por um medicamento e o investimento em pesquisa para desenvolvê-lo, seu custo de produção, o benefício clínico que oferece ou a renda média dos países onde é vendido.
O preço, na verdade, resulta da combinação de dois fatores principais. De um lado, o interesse da indústria em maximizar o retorno sobre seu investimento valendo-se da sua posição de monopolista garantida por patentes e, de outro, a capacidade de negociação e regulação de sistemas de saúde.
A negociação é fundamental para se chegar a um “preço justo”, definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como aquele “acessível a sistemas de saúde e pacientes e que, ao mesmo tempo, ofereça incentivos de mercado suficientes para que a indústria invista na inovação e produção de medicamentos”. Também é central para que sistemas de saúde não paguem preços desproporcionais aos benefícios realmente oferecidos por novos medicamentos. Sistemas de saúde têm poder de barganha porque são os maiores compradores e conseguem negociar volume por preço. São também praticamente os únicos compradores de medicamentos cujo preço torna-os inacessíveis à compra direta por indivíduos e famílias.
Muitos países negociam preço de medicamentos inovadores usando como referência o preço praticado em outros países. Uma consequência negativa disso é que a indústria farmacêutica evita oferecer descontos maiores onde o preço não está protegido por sigilo, pois esse valor vai ancorar a negociação e a regulação de preço em outros lugares. Por isso, alguns países mantêm em sigilo o preço acordado com a indústria farmacêutica.
Essa estratégia é particularmente vantajosa para países onde estão sediadas farmacêuticas multinacionais. Ao garantir sigilo de preço, conseguem descontos para seus sistemas de saúde ao mesmo tempo em que permitem às suas empresas lucrarem com preços maiores no exterior. É muito provável que os melhores preços estejam nos países mais ricos e escondidos por trás de acordos de confidencialidade. Isso agrava o problema já identificado na literatura científica de que o preço de medicamentos, quando ajustado por poder de compra, é menor em países mais ricos.
O valor econômico da confidencialidade fica explícito no exemplo da Alemanha. Uma legislação recentemente aprovada deu às farmacêuticas que investem em pesquisa e desenvolvimento lá a opção de manter sigilo sobre o preço máximo que o governo fixa para a compra de seus produtos. Em troca, devem oferecer ao sistema de saúde um desconto de 9% sobre esse valor.
No Brasil, por outro lado, o preço dos medicamentos comprados pelo SUS é público. Isso está em linha com o princípio constitucional da publicidade e a Lei de Licitação. De acordo com relatório produzido pela Wemos e a Health Action International - organizações que advogam pelo direito à saúde -, a legislação no Brasil é exemplar e promove accountability, transparência e beneficia outros países que usam o preço no Brasil como referência.
Porém, essa transparência tem sido questionada por dificultar a negociação de preço. O Brasil está em um “dilema do prisioneiro”, em que a escolha racional para cada um leva a um resultado coletivo ruim. Idealmente, todos os países cooperariam para tornar seus preços transparentes. Assim, o melhor preço conseguido por um serviria de referência para os demais. A transparência diminuiria a assimetria de informação entre indústria e sistemas de saúde na negociação. Por outro lado, se alguns países não cooperam e mantêm sigilo, aqueles que praticam preço transparente são colocados no pior cenário: não conhecem e não conseguem usar preços sigilosos como referência e nem recebem descontos maiores por receio da indústria de que outros exijam o mesmo benefício.
Uma solução para o dilema do prisioneiro é maior cooperação entre as partes. Um passo importante nesse sentido foi a Resolução 72.8 da Assembleia Mundial da Saúde, que urge todos os países a adotarem mais transparência com relação aos preços praticados em seus mercados. Essa resolução teve amplo apoio do Brasil. Como afirmou uma representante da delegação brasileira, “é somente com total transparência que os governos podem entrar em negociações justas sobre os preços do tratamento”.
Contudo, recentemente, membros do Ministério da Saúde têm aventado a possibilidade de mudar de estratégia e passar a firmar acordos sigilosos com a indústria para conseguir preços menores para o SUS. De acordo com os modelos até agora propostos, os preços reais seriam conhecidos apenas pelo governo, a indústria e o Tribunal de Contas da União. Colocando questões jurídicas à parte, essa é uma estratégia racional dentro da lógica do dilema do prisioneiro porque nos tira do pior cenário.
Porém, e apesar do risco de incoerência entre a posição adotada internacionalmente e sua prática interna, o Brasil não deve perder de vista a estratégia de longo prazo de fomentar cooperação multilateral por transparência e negociação conjunta de preços. Sistemas de saúde têm mais poder de barganha cooperando que negociando isoladamente e secretamente. Ademais, a falta de transparência cria distorções globais ao permitir que países de renda alta, que já possuem gasto em saúde maior, consigam preços de medicamentos menores que o resto do mundo.
A estratégia do Brasil precisa conciliar interesses nacionais de curto prazo com objetivos globais de longo prazo.
(*) Daniel Wei Liang Wang é professor de Direito da FGV-SP, através do Valor Econômico
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