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“Secar”: contribuição dos torcedores brasileiros à língua de Camões

Marcelo Módolo e Henrique Braga (*) | 07/04/2021 08:00

Antes da partida contra o time mexicano Tigres, em que acabou vendo seu Palmeiras eliminado na semifinal do Mundial de Clubes, o técnico português Abel Ferreira mencionou em entrevista ter aprendido recentemente um termo que não se usa no português de além-mar:

“Há uma expressão no Brasil que eu nunca tinha ouvido, que são os secadores. Há secadores por todo lado. Mais do que nunca, porque o segredo é tão simples, no futebol o mais difícil é fazer o fácil. Temos que lembrar do que nos trouxe até aqui e fazer o que sabemos fazer, que é o futebol coletivo, gastar energia na nossa forma de defender e atacar”.

Mesmo com o empenho do treinador, a equipe mexicana fez a alegria dos “secadores”, que viram a eliminação da equipe alviverde. O que nos chamou a atenção, porém, foi que Abel – uma pessoa de 43 anos, natural da pequena cidade portuguesa de Penafiel, distrito do Porto – não conhecia o termo “secador”, como “alguém que torce contra um outro time em um jogo”. Seria um “brasileirismo”? E qual a origem desse termo?

Um brasileirismo bem brasileiro

Que as línguas mudam no seu aspecto ortográfico e morfossintático não é novidade, talvez por serem critérios mais palpáveis, visíveis. Mas as línguas mudam também no nível do significado, com a atribuição de novos sentidos a vocábulos já presentes no léxico do idioma. No caso da língua portuguesa, quando essas inovações são promovidas em território brasileiro e ficam restritas ao país, são chamadas de brasileirismos.

No caso de “secar”, o mais interessante é a constatação de que não há termo paralelo entre os aficionados lusitanos. Lá, como cá, é sim comum torcer por um revés do adversário (muitos torcedores do Sporting desejarão ver o Porto, seu rival, derrotado pelo Chelsea na Liga dos Campeões); no entanto, ao contrário dos brasileiros, os patrícios podem no máximo “torcer contra”, sem o poder de “secar” o adversário. É diferente.

Em seu Dicionário do folclore brasileiro, Câmara Cascudo oferece uma pista. Em um dos tantos verbetes que documentam traços da cultura popular local, o pesquisador registra o poder atribuído a indivíduos supostamente capazes de tirar o viço, a saúde e até mesmo a vida de outrem, cujas qualidades provocaram inveja. Trata-se do “mau-olhado”, ou simplesmente “olhado”. No mesmo verbete (“olhado”), são indicados ainda termos que nomeiam o invejoso feiticeiro, entre os quais figura “olho de secar pimenteira”.

De fato, o ato de “secar” pressupõe o de olhar: para ser considerado “secador”, o sujeito deve assistir à partida do rival, para então lançar o feitiço. Em linguagem cotidiana, amantes do futebol perguntam uns aos outros: “E aí, vai secar hoje?”. Nesses contextos, “secar” é algo como “ver o jogo de um adversário contra um terceiro, ansiando por um tropeço”. Em suma, “secar” é jogar um “quebranto futebolístico”.

“Secar pimenteira” à luz da linguística cognitiva

A crença popular tem a pimenta como um dos antídotos contra um eventual mau-olhado – que seria absorvido pelo heroico vegetal. Desse modo, sujeitos dotados de intenso poderio agourento seriam capazes de secar não apenas uma pimenta, mas toda uma pimenteira.

Tendo por base essa ideia, a expressão “olho de secar pimenteira” (que nomeia o próprio agoureiro) surge de um processo metonímico, em que o causador (no caso, o “feiticeiro”) é nomeado pelo efeito provocado (o definhamento da pimenteira). Além disso, também a referência ao “olho”, para referir-se ao indivíduo integralmente, é ainda metonímica.

Essa metonímia, por sua vez, parece estar na origem do “secar o adversário”: com seu “olhado”, o torcedor rival faz definhar a outra equipe. Nesse caso, o processo cognitivo é metafórico, por ser amparado em uma relação de semelhança: tal qual a “pimenteira” da expressão original, o time adversário seca, definha, pelo poder maligno do “secador”.

Ordem e caos nas mudanças linguísticas

O breve histórico do brasileirismo “secar” revela muito de como ocorrem as mudanças linguísticas. De um lado, não deixa de ser inusitado e aparentemente aleatório que noções como “olhado”, “mau-olhado”, ou “quebranto” estejam linguisticamente associadas à origem conceitual no termo – o que explica sua exclusividade no contexto brasileiro. De outro, vemos que processos cognitivos bastante conhecidos (metáfora e metonímia) subjazem o processo de surgimento dos brasileirismos “secar” e “secador”, revelando haver princípios fundamentais regendo a imprevisível criatividade dos falantes quando promovem inovações em sua língua nativa.


(*) Marcelo Módolo é professor da FFLCH-USP e pesquisador do CNPq e Henrique Braga é doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela FFLCH-USP

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