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Tropa de Elite 2: o sistema dentro do sistema

Por Fábio Coutinho de Andrade (*) | 24/02/2011 10:00

Não se trata de mais um filme que mostra a realidade da polícia no enfrentamento do crime nas favelas. Nem de traficantes que sofrem a necessária ação policial. Realidade e ficção se confundem, numa perfeita simbiose nesse filme que é um retrato da sociedade atual, derruindo vários mitos implantados pela elite, pela mídia e pelos políticos, na defesa de seus interesses.

O filme teve inspiração, dentre outros, no deputado estadual pelo PSOL, Marcelo Freixo, sendo ele o responsável pelo enfrentamento da milícia no Rio de Janeiro. Seu currículo inclui a atuação como professor de história em prisões e a negociação de rebeliões ao lado do Bope. Em 2006 candidatou-se ao parlamento fluminense. Foi o responsável pela instalação da CPI das milícias, que prendeu 275 milicianos e desmontou sua liderança. Hoje, anda de carro blindado e com seguranças armados. Foi o segundo candidato a deputado mais votado no Estado.

As milícias

Milícias são grupos formados por policiais, ex-policiais militares, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares, muitos deles moradores das comunidades, que se utilizam do pretexto de proteger a população das favelas contra as ações de narcotraficantes. A inspiração é saída do contexto colombiano. Suas ações são orientadas por razões práticas, da mesma forma como ocorre com o tráfico de drogas.

Cobram pedágios dos moradores em troca do fornecimento de proteção e repressão ao tráfico. Expandindo o seu poder, hoje atuam também na agiotagem e na central clandestina de Tv a cabo, conhecidas como “TV a gato”. Tais redes somam pelo menos 600 mil usuários no Rio de Janeiro, o que significa que há dois assinantes informais para cada assinante formal, segundo estimativas da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Tudo o que pode ser colocado no comércio, dentro da realidade informal das favelas, passa a ser explorado pelos paramilitares.

Segundo o comandante do Bope, coronel Mário Sérgio de Brito Duarte, a expansão destes grupos só é possível com o apoio da população local e a participação informal de parcela das unidades policiais atuantes nessas regiões. O policial faz vista grossa no momento da invasão, se ausentando do local, retornando depois que a milícia se instala, para impedir a volta dos traficantes. Trata-se de um fenômeno que vem de dentro do poder.

Os milicianos vendem sua força de trabalho, fazendo o que aprenderam e que deveria ser utilizado em nome do Estado, e não contra ele. Contudo, vivemos em um país que possui taxas de desemprego galopantes, sem mencionar o baixo salário pago aos policiais militares. É sabido que o salário dos policiais cariocas é o mais baixo do Brasil. Isso tudo fomenta a construção social da insegurança, ou do estado de guerra.

Esses grupos agem onde o Estado deixou de agir. Há muito tempo, diga-se. A milícia somente ocupou um “espaço”, que antes era dos traficantes. Mas ela não age sozinha, da mesma maneira que os traficantes não o faziam.

O Bope

Segundo a Wikipédia, “O BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) foi criado em 19 de janeiro de 1978, pelo Boletim da Polícia Militar n° 014 da mesma data, como Núcleo da Companhia de Operações Especiais (NuCOE), através de um projeto elaborado e apresentado, pelo então Capitão Paulo César Amêndola de Souza ao Comandante-Geral da PMERJ, Coronel Mário José Sotero de Menezes.

Funcionando nas instalações do CFAP-31 de voluntários e subordinado operacionalmente ao Chefe do Estado-Maior da PMERJ. Pelo Bol. da PM n° 33, de 07 de abril de 1982, por resolução do Comandante Geral da PM, o núcleo da companhia de operações especiais passou a funcionar nas instalações do Batalhão de Polícia de Choque, fazendo parte da orgânica daquela unidade e recebendo a designação de Companhia de Operações Especiais – COE.

Em 27 de junho de 1984, através da publicação em Bol da PM n° 120, a COE passou a ser denominada Núcleo de Companhia Independente de Operações Especiais – NuCIOE, funcionando nas instalações físicas do Regimento Marechal Caetano de Farias, ficando subordinado apenas administrativamente ao BPChq, retornando sua subordinação operacional ao chefe do EMG.

Posteriormente, pelo Decreto-Lei n° 11.094 de 23 de Março de 88, foi criada a Companhia Independente de Operações Especiais – CIOE, com suas missões próprias em todo o Estado do Rio de Janeiro, que seriam determinadas pelo Comandante Geral. Finalmente pelo Decreto n°16.374 de 01 de Mar 91 deu-se a criação do Batalhão de Operações Policiais Especiais – BOPE, ficando extinto a CIOE. Em 2000 ganhou instalações próprias, localizadas no Morro do Pereirão, no bairro de Laranjeiras, na zona sul da capital fluminense.

Atualmente o emprego do BOPE em situações criticas ou missões especiais está regulado pela nota de instrução n°004/02 – EMG, estando a unidade subordinada administrativamente e operacionalmente ao Estado-Maior Geral da Corporação (Bol da PM n° 090 de 18 de maio de 2007).

O poder encoberto

Se as milícias são formadas, na grande maioria, por policiais militares, o que há de errado? Quem encobre o poder paralelo? Essa questão é muito complexa para ser respondida de forma simplista ou apontando um ou outro culpado, por envolver questões sociais, econômicas e sociológicas.

As favelas sempre foram um espaço de controle por parte do poder. Ao mesmo tempo, a sociedade fecha os olhos para o que acontece ali, passando ao largo dos problemas envolvidos e que, com o tempo, só tendem a crescer. A favela é um organismo social, se desenvolve, se expande. E toma conta de outros espaços.

As favelas surgiram pela falta de ordenamento planejado nas grandes cidades. As pessoas começaram a migrar do campo para as cidades em busca de emprego e de melhores condições de vida. Como não encontravam o que procuravam, viram-se obrigadas a procurar abrigo embaixo de pontes, viadutos e nos morros. Foram se formando paulatinamente as grandes favelas, com o beneplácito do Poder Público, que nunca atuou como deveria, de acordo com a lei, para evitar essa situação.

Resumidamente, com o crescimento e desenvolvimento das comunidades, toda uma realidade social ali é implementada. Onde haviam loteamentos, hoje há casas e equipamentos urbanos, como postes de luz e calçamento. Como não há proteção social e o fornecimento de serviços sociais básicos, surgem grupos de liderança, que logo impõem suas próprias leis e vontades, com base na força. Há uma lei própria, um código de conduta própria, como ocorre em qualquer agrupamento social.

A agravar esse fato, o acesso às favelas é dificultado, pois estão localizadas em morros. Tudo isso facilita a ação dos criminosos e dificulta a ação da polícia e dos órgãos estatais, conferindo extrema vantagem aos traficantes, que têm acesso a uma visão ampla do terreno, podendo identificar com antecedência a chegada dos policiais (é conhecido o uso dos “fogueteiros” do tráfico, imbuídos dessa tarefa).

O fato é que o problema hoje tomou uma proporção tal que não há solução imediata. E os governantes pouco estão dispostos a fazer para solucionar essa situação a longo prazo. O mandato é curto, os interesses particulares são mais importantes. E, dentre estes, manter esse organismo (a favela) funcionando é de suma importância.

As milícias fazem parte do poder, isso já está evidente. É um poder dentro do poder, este o verdadeiro, o poder político, que corrompe visceralmente tudo o que encontra em seu caminho. Ou o sufoca, levando-o à morte, lenta e agônica.

As favelas servem de várias maneiras aos propósitos políticos. Em época de eleição, são um grande curral eleitoral, onde os candidatos podem comprar votos livremente, em troca de cestas básicas e outros serviços. E para ingressarem nos morros, para chegarem até a população, precisam de proteção. Eis a milícia agindo.

Nesse ponto, há um mito que precisa ser derrubado: o de que é o viciado que sustenta o tráfico. Isso não é verdade. Qual o “prazo de validade” de um viciado? Pouco tempo, dependendo do vício. Alem da droga despersonalizar o viciado, fazendo-o perder o emprego e romper o vínculo social e familiar, também exige muito financeiramente. Ele não consegue mais sustentar seu vício. E na loucura, na “fissura”, como é dito no jargão da malandragem, se torna refém de seu próprio vício. Se não pagar a dívida, o tráfico (ou a milícia, nos dias de hoje) cobra a sua parte.

Um exemplo de como o tráfico age é o do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, que ao subir um morro para fazer uma reportagem policial, flagrou a venda de drogas livremente nas ruas de uma favela, tendo levado esse fato ao conhecimento público, o que teve ampla divulgação pela imprensa. Ele foi morto pelo tráfico, de forma cruel, com golpes de uma espada “samurai” e, após, seu corpo foi embebido em combustível e incinerado.

É um poder que afronta o verdadeiro poder. Por trás disso há muitos interesses e muito dinheiro envolvido. E as milícias descobriram isso. Ao expulsar os traficantes dos morros, tomaram o seu lugar e expandiram os serviços, lucrando alto, para usar o bom português. E esse poder serve aos governantes, que precisam do dinheiro para emplacarem suas campanhas e seus projetos. É uma roda-viva interminável.

Conclusão

Diante de tudo o que foi exposto, o filme Tropa de Elite 2 pode conter alguns exageros e mesmo manipulação da mídia, mas ele retrata a realidade de nosso país nos dias de hoje. E mais: faz um alerta, por que a continuar dessa forma, esse país não mudará tão cedo.

Muitos aspectos da realidade social foram muito bem explorados pelo filme. Até mesmo o sagaz Capitão Nascimento (interpretado por Wagner Moura) foi enganado pelo sistema. É dessa forma que o sistema age. Quando a pedra no sapato começa a incomodar muito, deve ser descartada.

Também há um alerta, subliminar, penso eu, para que a população conheça em quem está votando. Deve-se lembrar que o filme entrou em cartaz pouco tempo antes do segundo turno eleitoral para a eleição de Presidente da República. Claro que a intenção não era modificar o resultado das urnas, mas alertar a população.

Outros questionamentos podem ser extraídos do filme. Por exemplo, a cena em que o filho do Capitão Nascimento pergunta por que ele mata as pessoas. E o capitão fica mudo. Ele faz parte do sistema, mas nunca se questionou, afinal para um policial do Bope “missão dada é missão cumprida”. Também a cena em que Nascimento intercepta um poderoso político, enchendo-o com uma saraivada de socos, “lavou a alma” de muitos brasileiros.

Mas há questões mais importantes a serem discutidas e levantadas. Fica a critério de cada um. Esse deve ser o objetivo de todo bom filme: conduzir ao pensamento crítico, não dando respostas óbvias a problemas complexos.

Esperemos pelo próximo Tropa de Elite.

(*) Fábio Coutinho de Andrade é advogado, especialista em Direito Penal e Processual Penal.

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