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Vacine-se contra tudo – Parte I

Momtchilo Russo (*) | 22/10/2020 09:03

Por que se vacinar?

Esta é uma questão central na atualidade, principalmente devido ao movimento antivacinas (anti-vax) que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como um dos dez maiores riscos à saúde global. Esse movimento se baseou em estudo que associava o desenvolvimento de autismo em crianças vacinadas, publicado em conceituado periódico científico (Lancet), mas os dados apresentados eram fraudulentos e o artigo foi retratado. Mesmo assim, no entanto, o movimento antivacinas persistiu.

O primeiro argumento a favor da vacinação leva em consideração que o Homo sapiens deixou de viver num mundo “natural”, contribuindo sobremaneira para isso o crescimento exponencial e descontrolado da população humana em relação às outras espécies animais. No caso da atual pandemia (covid-19), fica clara a contribuição da globalização e dos meios de transporte na disseminação da doença no planeta. Em outras espécies que também vivem em bandos, as infecções ficam restritas à região do seu habitat e a seleção natural atua há milênios nessas espécies, preservando uns e atingindo outros.

Em qualquer infecção há variáveis como carga infecciosa e padrão genético, tanto do hospedeiro como do agente infeccioso, que poupam alguns de sucumbir às infecções. Porém, deixar a seleção natural operar na espécie humana é retroceder alguns séculos no tempo, negar os benefícios evidentes da medicina moderna e ignorar as mortes que poderiam ser evitadas.

Um breve histórico das vacinas

A história das vacinas é fascinante, porém vou me ater apenas aos fatos mais marcantes. No fim do século XVIII, o médico inglês Edward Jenner resolveu vacinar o filho do seu jardineiro com um material obtido de lesões (pústulas – pox no inglês) semelhantes à varíola de peles de ordenhadoras de vacas que haviam contraído essa infecção no manuseio com as vacas (causada pelo vírus cowpox). Já se sabia na época que ordenhadoras de vacas eram protegidas contra a varíola (causada pelo vírus smallpox). Para provar que o menino estaria protegido após a vacinação, Jenner inoculou o menino com material obtido de pessoas com varíola, um experimento que não seria permitido hoje em dia considerando o risco e a bioética. O fato é que o filho do jardineiro não desenvolveu varíola e Jenner publicou o seu trabalho sobre esse procedimento, que denominou variolae vaccinae (a “vacina da varíola”, sendo que vaccinae deriva do latim vacca), em 1798.

A astúcia de Jenner foi juntar dois fatos conhecidos: 1) as ordenhadoras de vacas eram protegidas da varíola; e 2) a variolização, um procedimento praticado na China e em outros países, que consistia em escarificar a pele de indivíduos sadios com líquido obtido de crostas de varíola de paciente infectado, como uma tentativa de prevenir a varíola, o que nem sempre dava certo. Ou seja, juntando esses dois fatos, Jenner conseguiu vacinar o filho do seu jardineiro com mais segurança que o método usado na variolização.

O problema maior da vacina de Jenner na época era como obter esse material em quantidade para vacinar mais pessoas. Uma saída foi fazer a passagem do material vacinal de uma pessoa para outra e, evidentemente, isso acarretou a disseminação de outras infecções, como erisipela, sífilis etc. Esse problema da produção da vacina e seu armazenamento só começou a ser resolvido dois séculos depois. A mortalidade da varíola na sua forma grave (varíola major) chegava a níveis elevados (acima de 30%) e estima-se que ao longo do século XX tenha causado 500 milhões de mortes, dez vezes mais que a gripe espanhola (A history of immunology).

Um pouco mais de história

Somente no fim do século XIX é que se estabeleceu a relação entre doenças e microrganismos, devido aos trabalhos de Louis Pasteur e Robert Koch, dois cientistas fundadores da microbiologia e de duas escolas (uma na França e outra na Alemanha) geradoras de vacinas eficazes contra infecções, que foram fundamentais para o surgimento de um novo ramo do conhecimento, a imunologia.

A primeira experiência de Pasteur com as vacinas relacionava-se com a cólera aviária, que causa grandes prejuízos aos criadores de galinhas. A vacina foi descoberta por acaso, pois, ao usar uma cultura de Pasteurella multocida, bactéria causadora da cólera, que havia sido esquecida na bancada por um assistente que saíra de férias, foi verificado que a injeção dessa cultura não causava cólera nas galinhas. Mais ainda, se esses animais fossem inoculados com uma cultura nova que causava cólera também não desenvolviam a doença.

Pasteur resolveu homenagear Jenner e cunhou o nome de vacina para qualquer agente usado para imunizar contra infecções.

Em 1885, Pasteur aplicou a vacina antirrábica, usando o mesmo princípio de envelhecimento do agente infeccioso, numa criança que foi mordida por um cão com raiva. A criança sobreviveu e o trabalho de Pasteur teve grande repercussão social, dando início à aplicação de conhecimentos da microbiologia/imunologia na medicina.

A vacina antirrábica havia sido desenvolvida anteriormente, por Emile Roux, em cães, usando amostras de tecido nervoso envelhecido contendo o vírus da raiva. Robert Koch, por sua vez, descobriu o bacilo da tuberculose, obtendo sucesso em cultivá-lo em laboratório e, em seguida, conseguindo reproduzir a doença em animais com o produto dessa cultura.

Esses três eventos fazem parte do postulado de Koch e, junto com Pasteur, estabelecem a teoria microbiana (germes) das doenças.

Koch não conseguiu desenvolver uma vacina para a tuberculose, mas seus discípulos e colegas Behring, Ehrlich e Kitasato desenvolveram uma nova maneira de produzir vacinas para a difteria e o tétano. Na realidade, essas vacinas se basearam no trabalho pioneiro de Shibasaburo Kitasato, que mostrou ser possível proteger um animal contra o tétano transferindo soro de animal que havia sido infectado anteriormente. Por exemplo, quando o soro de coelhos infectados com Clostridium tetani era transferido para camundongos, estes se tornavam protegidos contra a bactéria ou a toxina tetânica.

Essa prática recebeu o nome de soroterapia e o procedimento foi denominado de imunização passiva, pois era passivamente transferido, sendo aplicado em soldados feridos na guerra para evitar o desenvolvimento de tétano, o que era comum na época. Posteriormente, foi demonstrado que a mistura do soro (anticorpos) com a bactéria neutralizava o efeito da bactéria e que os animais tornavam-se imunes a ela. Esse processo dependia de uma resposta ativa do animal ao estímulo, sendo a base imunológica de todas as vacinas.

Paralelamente aos trabalhos do grupo alemão, Émile Roux e Alexandre Yersin, do grupo francês, caracterizaram a toxina da difteria e utilizaram cavalos para obter soro antitoxina em grande quantidade e puderam comprovar a eficácia da soroterapia na redução de casos fatais de difteria na população.

Chama a atenção que tanto a patologia da difteria como a do tétano se deve a toxinas e que os soros (parte fluida do sangue denominada de humoral e que contém anticorpos) previnem totalmente essas doenças. Isso revela que a imunidade humoral – que hoje sabemos ser mediada por anticorpos – é fundamental para controlar essas infecções. Porém, o mesmo princípio não foi possível ser aplicado na tuberculose, o que na época gerou grande frustração. Hoje sabemos que a imunidade à tuberculose é dependente de imunidade celular, um mecanismo imunológico que depende de células e que não é transferido por anticorpos.


(*)  Momtchilo Russo é professor titular do Departamento de Imunologia do ICB-USP e do Departamento de Moléstias Infecciosas da FMUSP

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