Violência política de gênero e os limites da democracia brasileira
Na última semana, o Brasil testemunhou mais um episódio de violência política de gênero, desta vez contra a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, que deixou uma audiência no Senado após ser alvo de declarações e ofensivas proferidas por parlamentares. "A mulher merece respeito, a ministra não", disse o senador Plínio Valério (PSDB-AM), ao tentar, de forma deliberadamente cruel, separar a dignidade da pessoa de seu papel público. A fala foi acompanhada de interrupções e ataques reiterados, culminando com a frase de outro senador de que Marina deveria "se pôr no seu lugar".
Não se trata de um caso isolado. É sintoma de um sistema político que ainda enxerga com estranhamento e hostilidade, a presença de mulheres em cargos de poder. O que a ministra Marina Silva e outras mulheres vem sofrendo, não só no Brasil mas mundialmente chama-se violência política de gênero, que são ataques direcionados a mulheres por ocuparem posições de visibilidade na vida pública, com o objetivo claro de silenciar, intimidar ou expulsar essas vozes do debate político.
Essa violência se manifesta de diversas formas: físicas, simbólicas, verbais ou digitais. Pode vir sob a forma de ameaças, difamações, assédio online, exclusão deliberada de espaços de decisão ou deslegitimação baseada em estereótipos de gênero. Segundo a definição da cientista política Julie Ballington, trata-se de qualquer ato ou ameaça motivado por gênero que busque impedir a plena participação política de mulheres.
É um fenômeno global, antigo, mas que se tornou mais conhecido em meados dos anos de 2012, impulsionado pelo Observatório da Igualdade de Gênero da CEPAL que começou a tratar o tema de forma sistemática. A crescente presença de mulheres, sobretudo negras e pessoas LGBTQIAPN+ na política e em espaços de liderança escancarou mecanismos, muitas vezes sutis e outras vezes brutais, usados para tentar conter esse avanço.
No Brasil, os números são alarmantes. A Justiça Eleitoral registrou aumento nos casos de violência política contra mulheres nas eleições de 2022. Uma pesquisa do Instituto Marielle Franco mostrou que 3 em cada 4 mulheres negras eleitas foram alvo desse tipo de violência após a posse. Outro levantamento da Plan International Brasil revelou que 27% das jovens ativistas já foram desencorajadas a continuar sua militância, e 17% temeram pela própria segurança ao exercerem seu ativismo.
Esses dados evidenciam um sistema que coíbe e pune jovens mulheres e mulheres que almejam ocupar espaços que historicamente não lhes foram direcionados. É preciso enfrentar o ambiente hostil que mulheres - especialmente mulheres negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e de territórios periféricos - encontram ao tentar exercer seus direitos políticos.
Desde 2021, a Lei nº 14.192 tipifica a violência política de gênero no Brasil. Mas a existência da lei não é suficiente. É necessário ampliar canais seguros de denúncia, garantir acolhimento às vítimas e, sobretudo, romper com a cultura que naturaliza a agressividade como ferramenta de exclusão.
Esse enfrentamento passa por algumas frentes urgentes:
- Educação política e formação de lideranças femininas, desde a juventude, com foco não apenas na entrada, mas na permanência de mulheres nos espaços institucionais;
- Responsabilização de partidos e instituições, que precisam atuar ativamente na prevenção e combate à violência dentro de suas estruturas e campanhas;
- Fortalecimento de redes de apoio, capazes de garantir suporte mútuo, resiliência e resposta coletiva a episódios de violência;
- E, acima de tudo, a construção de uma cultura política baseada no respeito à diversidade, que envolva também os homens nesse processo de transformação.
A violência sofrida por Marina Silva evidenciou um esforço coordenado para minar, constranger e deslegitimar a presença de mulheres nos espaços onde decisões são tomadas.
Enquanto esse tipo de conduta é tolerado, a democracia brasileira continuará sendo um projeto incompleto. Não há democracia plena quando as mulheres são tratadas como intrusas ou usurpadoras no debate público. Reconhecer a gravidade dessa violência e agir contra ela é dever de todas as instituições democráticas, da sociedade civil e da opinião pública.
(*) Por Ana Nery Lima, especialista em Gênero e Inclusão da Plan International Brasil
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