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OUTUBRO, QUINTA  16    CAMPO GRANDE 31º

Beba das Crônicas

Pressa, chipas e o tempo que não passa

Por André Alvez (*) | 16/10/2025 15:31

Percebi, já tem um bom tempo, que sempre estou com pressa. É algo que foge ao meu controle, de repente, uma febre percorre o meu rosto e quero chegar logo a algum lugar que muitas vezes nem sei exatamente qual.

Ontem estava apressado no trânsito de Campo Grande, que agora deu para engarrafar no centro da cidade. Pensei, estou com pressa para o que exatamente? Nada urgente, quatro horas da tarde, dia acabando, quase nada a fazer.

Surge uma ideia, um sorriso solitário, o resmungo: vou para o supermercado comprar umas chipas, quando voltar, o trânsito certamente estará mais calmo. Mas a febre retornou assim que adentrei no estabelecimento: logo no vão da primeira prateleira, no fundo do setor de pães, uma senhora, bem velhinha, entrou na minha frente. Não tinha como ultrapassá-la, seria muita falta de educação e o corredor é estreito.

Ela chegou bem na minha frente e deu de cara com a balconista, uma moça quase senhora, olhar de enfezo, cara fechada, uma veia pulsando no centro da testa, completamente desfeita de qualquer sinal de amizade.

Eu atrás da senhorinha, a testa queimando da pressa de sempre, bem de frente à balconista: tentei um sorriso por cima dos ombros e recebi de volta um fechar de par de sobrancelhas, dessas desenhadas a lápis. Pelo menos tinha chipas, pensei.

A velhinha apontou para as chipas sem erguer o rosto em direção da atendente:

- É de agora?

- Começo da tarde, senhora

- ummmm, então não está quentinha...

- Começo da tarde, senhora.

- Vou levar três.

A atendente jogou três chipas no embrulho como quem joga um pacote na lixeira.

A velhinha arrancou um pedaço da chipa e colocou na boca. Mastigou, mastigou, fez cara feia...

- Está com gosto de borracha

- Começo da tarde, senhora...

- Não tem gosto de queijo.

A atendente ficou quieta, mas a veia na testa pulsou mais forte.

- Vocês que fazem ou é daquelas congeladas?

- Não sei, senhora...Sou só a balconista.

A senhorinha cheirou o pacote, apertou as chipas, fez cara de desgosto.

- Acho que vou levar só essa que mordi.

A balconista apanhou o pacote com enfezo e atirou as pobres chipas de volta na prateleira.

- Deseja mais alguma coisa?

A senhorinha ficou um bom tempo calada, como quem pensa na quantidade de coisas que ainda desejava fazer naquela fase da vida. Rompeu o silêncio após longos segundos:

- Tem sopa paraguaia?

A balconista nem respondeu, foi logo apanhando três ou quatro pedaços de sopa paraguaia e as colocando no pacote.

- Tem cebola na sopa?

- Olha, minha senhora, não fui eu que fiz, mas desconheço sopa paraguaia sem cebola,

- Ummmm...Detesto cebola. Mas está bem mais quentinha que a chipa. É de hoje, né?

- Começo da tarde, senhora,

A senhorinha olhou para os lados como quem procura algum fiscal, apanhou um pedaço da sopa e colocou na boca. Mastigou, mastigou...Para cada mastigada, uma cara feia.

- Horrível! Como vocês têm coragem de vender uma porcaria dessas?

- Minha senhora, eu sou apenas...

- A atendente, eu sei, mas vai me ouvir para depois falar para o dono.

A balconista suspirou fundo, mas não disse nada. Depois apanhou os pedaços de sopa paraguaia e retornou na prateleira, inclusive o pedaço que a senhorinha tinha mordido.

- Estou vendo ali no canto uns enroladinhos de presunto e queijo...Me vê uns cinco.

- Olha, minha senhora, é melhor a senhora não levar.

- Não foram feitos no começo da tarde?

- Não, são da parte da manhã. Provavelmente o presunto está azedo e o queijo duro.

- Ora, o que eu vou comer então?

- Sugiro bolacha, ou pão francês.

Como se fosse combinado, naquele instante um homem enorme saiu de dentro da cozinha com uma fornalha de pães ardendo de quentes. Jogou tudo de uma vez na prateleira.

- Olha lá, que sorte da senhora, acabou de sair, estão bem quentinhos.

A senhora murchou o olhar, não fez nenhum movimento, apenas encarou a balconista com certo desdém:

- Estão muito quentes...

- Mas a senhora...

- Moça, me dê cinco chipas, dessas frias e sem queijo, vou levar assim mesmo.

A atendente ameaçou um sorriso, mas logo se deu com o ar de enfezo da senhorinha. Em questão de segundos, retornou o pacote com as chipas para as mãos da senhorinha. Ela se foi sem se despedir. A moça então me encarou, um jeito meio desanimado:

- O senhor vai querer o quê?

Sorri de leve, despregando os olhos do relógio.

- Nada não, só estava esperando o tempo passar...

E voltei para o meu carro, imaginando que enfrentar o trânsito, sem pressa, era uma obrigação muito menos penosa que trabalhar num supermercado, mas logo no primeiro semáforo tive que frear, sinal fechado.

E fiquei tamborilando os dedos no painel do carro, um pensamento me dominando, eu devia ter comprado umas chipas, daquelas ruins e praticamente sem queijo, ao menos serviriam para distrair enquanto o tempo não passa.

André Alvez

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.