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Cidades

"É tendência mundial", diz especialista sobre a criação do juiz de garantias

“O juiz que atua na fase de investigação não pode ser o mesmo que vai atuar no processo penal”, defende Garcete, que estudou tema

Aline dos Santos | 13/01/2020 14:27
Garcete tem doutorado sobre o tema e defende dois juízes no processo. (Foto: Marcos Maluf)
Garcete tem doutorado sobre o tema e defende dois juízes no processo. (Foto: Marcos Maluf)

O juiz de garantias - figura criada no Pacote Anticrime e que motiva forte oposição de associação de magistrados - já teve embrião em Mato Grosso do Sul por oito anos e ganha a defesa do juiz da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande, Carlos Alberto Garcete de Almeida.

Em voz dissonante dos colegas, o magistrado, que abordou o tema em tese de doutorado na PUC/São Paulo (Pontifícia Universidade Católica), vê a nova medida como essencial para uma Justiça mais justa. “O juiz que atua na fase de investigação não pode ser o mesmo que vai atuar no processo penal, julgando o caso”.

Conforme a legislação sancionada em dezembro, com previsão de entrar em vigor no dia 23 deste mês, o juiz de garantias atua no processo até a etapa de recebimento da denúncia. Ou seja,  decide a fase de investigação criminal, avaliando medidas como prisão, quebra de sigilo bancário e interceptação telefônica. Concluída a investigação e se aceita a denúncia, o processo passa para um segundo magistrado, que será responsável pela sentença.

“O juiz de garantias é uma tendência em todos os países desenvolvidos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Não é uma jabuticaba, como alguns já escreveram em redes sociais, algo que se cria no Brasil. É mais um passo que a Justiça dá em termos de evolução do processo penal”, afirma Garcete.

Experiência já existe - Para Garcete, professor universitário há 15 anos, o tema nem deveria ser visto como novidade, por constar em projeto de lei de 2010 sobre o novo Código de Processo Penal. No Estado, o TJ/MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), por meio do Provimento 162, criou em 2008 um grupo de juízes para decidir sobre procedimentos investigatórios a cargo dos órgãos de combate às organizações criminosas.

“Até 2018, nós tivemos provimento que designava juízes para atuação sobre o crime organizado e que não eram os juízes que iriam atuar na fase judicial. Isso era embrião, aqui em Mato Grosso do Sul, do juiz de garantias”, salienta o magistrado.

Conforme Garcete, também há exemplo similar do juiz de garantias em São Paulo, que há 20 anos tem grupo de magistrados específicos para a fase de investigação.

"Há uma tendência a condenar para reconfirmar o ato que já decidiu lá atrás", afirma juiz. (Foto: Marcos Maluf)
"Há uma tendência a condenar para reconfirmar o ato que já decidiu lá atrás", afirma juiz. (Foto: Marcos Maluf)

Sem querer – Ao apontar que a previsão é um aperfeiçoamento e não uma forma de corrigir erro do que vinha sendo praticado até então, Garcete cita a teoria da psicologia (dissonância cognitiva) aplicada ao processo penal.

“Na tese de doutorado, faço uma exposição disso. Existem vários estudos que comprovam que quando o juiz decide medidas ainda na investigação, ele se sente comprometido, no seu subconsciente, a confirmar e reconfirmar aquelas medidas fortes que adotou. Por exemplo, as prisões. Vale destacar que ele não vai fazer a condenação intencionalmente. Isso é trabalhado no subconsciente da pessoa. Há uma tendência a condenar para reconfirmar o ato que já decidiu lá atrás. Quando vai para um juiz que não participou da investigação, ele tem mais isenção para decidir”, afirma.

Na Alemanha, pesquisa de Bernd Shünemann, autor do artigo “O juiz como um terceiro manipulado no processo penal”, apontou que os juízes que tiveram contato maior com a investigação preliminar e atuação mais ativa na instrução acabaram por condenar.

Voluntários, os juízes foram divididos em dois grupos. Dentre os que participavam da investigação, 92% condenaram o réu se tinha autorizados medidas como prisão. Entre os juízes que não participaram da investigação, o resultado foi dividido, com 50% de condenação e 50% de absolvição. “Se chega a conclusão de que o juiz que não adota medidas fortes, vai mais imparcial para o momento de julgar”.

"Grupo da Lava Jato fazia minuta de denúncia e encaminhava para o juiz, que dizia isso não ficou bom, tira esse parágrafo. Exatamente o que se tenta evitar com o juiz de garantias", afirma Garcete.
"Grupo da Lava Jato fazia minuta de denúncia e encaminhava para o juiz, que dizia isso não ficou bom, tira esse parágrafo. Exatamente o que se tenta evitar com o juiz de garantias", afirma Garcete.

Toffoli e Moro – No cenário nacional, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ministro Dias Toffoli, destaca que o juiz de garantias é viável e não aumenta os custos. Já o ministro da Justiça, Sergio Moro, ex-juiz federal, considera que a aplicação da medida é inviável, citando, por exemplo, comarcas com apenas um juiz.

“As revelações do The Intercept, sem entrar no mérito da prova, se é lícita, ilícita, se pode ser aproveitada. De qualquer modo, lá tem algo, e não contestaram isso, que havia conversa entre eles. O grupo da Lava Jato fazia minuta de denúncia e encaminhava para o juiz, que dizia isso não ficou bom, tira esse parágrafo. Exatamente o que se tenta evitar com o juiz de garantias. Ele não pode ser alguém que participa do jogo, ele é um árbitro ali”, diz Garcete, recordando as comunicações entre Moro e procuradores.

De acordo com a Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, o juiz de garantias deve ser implantado a partir de 23 de janeiro. Com nomes diferentes, a função já existe em países como Espanha, Portugal e Itália.

Em Campo Grande, são oito varas criminais. O pedido de investigação é distribuído por sorteio. Desta forma, com um atuando como juiz de garantias, restam sete magistrados para a sentença. “Na comarca menor, existe outra solução. Nós não trabalhamos mais com o processo de papel. Mas com processo digital e remotamente. Sem necessidade de deslocamento”, afirma Garcete.

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