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Cidades

De Beira-Mar à Omertà, bilhetes colocam prisões federais em xeque

Denúncia feita esta semana à Justiça mostra com clareza artifício usado por criminosos para se comunicar

Marta Ferreira | 05/03/2021 17:20
Trecho da denúncia com parte das anotações encontradas com preso e trecho do depoimento dele. (Foto: Reprodução de processo)
Trecho da denúncia com parte das anotações encontradas com preso e trecho do depoimento dele. (Foto: Reprodução de processo)

Concebido para ser o mais seguro no País, o sistema prisional federal não dá conta de impedir a comunicação entre detentos, mesmo aqueles colocados no regime mais severo de cumprimento de pena. É o que demonstra, com detalhes, um dos braços investigatórios da Operação Omertà, deflagrada em 2019, contra milícia armada atuante em Mato Grosso do Sul, e que já implicou mais de cem pessoas em crimes variados, de homicídios à exploração do jogo do bicho e à lavagem de dinheiro.

Manuscritos de Beira-Mar apreendidos com Beira-Mar em prisão federal de Rondonônia, em 2017. (Foto: Divulgação)
Manuscritos de Beira-Mar apreendidos com Beira-Mar em prisão federal de Rondonônia, em 2017. (Foto: Divulgação)

A denúncia mais recente da operação, contra oito acusados de tentar impedir a investigação de organização criminosa por planejar matar autoridades, foi feita à Justiça nesta semana pelos promotores do Gaeco (Grupo de  Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado). O documento pormenoriza como funciona o artifício para driblar o isolamento prisional, antes utilizado por Fernandinho Beira-Mar e Jarvis Pavão.

Os dois são homens apontados como chefes poderosos de quadrilhas ligadas principalmente ao tráfico de drogas, mas com ramificações em outras atividades ilícitas, no Brasil em países vizinhos fornecedores de drogas e armas, como Paraguai, Bolívia e Colômbia. Em 2017 e no ano passado, operações contra Beira-Mar e Pavão indicaram o uso dos bilhetes para comandar seus subalternos do crime do lado de fora, em prisão de Rondônia mantida pelo Ministério da Justiça.

No caso da Omertà, a descoberta é outra, tão ou mais grave. As missivas, passadas de cela em cela, e depois destruídas - mas com o conteúdo já disseminado - tinham o objetivo de levar a cabo plano de ataque a autoridades envolvidas nas apurações da Omertà. Os alvos eram um delegado de Polícia Civil, um promotor e um defensor público de Mato Grosso do Sul.

Diferente das outras ações já citadas que identificaram o uso da comunicação por escrito pelos presos, agora há um personagem de dentro do universo prisional confirmando tudo. Ele anotou os recados em um pedaço de papel higiênico e entregou à direção do presídio que, por sua vez, comunicou o Gaeco.

Os vizinhos de cela, então, foram separados, pois estavam alojamentos contíguas no presídio federal de segurança máxima de Mossoró, no Rio Grande do Norte, permitindo a comunicação irregular.

Testemunha protegida - Sob compromisso de ter a identidade preservada, o detento, de 30 anos, não apenas levou o conteúdo ao conhecimento das autoridades, como topou falar a promotores e esmiuçar como era feita a troca de mensagens, escritas em papel higiênico, usando “só a pontinha da caneta”.

Por esse relato, os recados passavam por quatro presos, incluindo o próprio depoente, seja por baixo da porta, seja pela fresta que existe nos alojamentos por onde eles conversam.

Quando chegava ao destino final, a mensagem era destruída e jogada no vaso sanitário, explicou. De lá para fora, a investigação mostra que as visitas permitidas, entre elas advogados, trataram de conduzir a informação ao destino.

“Então como é que é?”, pergunta o promotor ao depoente:

Vai jogando de um em um assim, pra frente... vai fazendo um zig-zag (sic) assim, até chegar no último, passa por baixo da porta, pras câmera não pegar”, detalhou a testemunha.

Ou seja, os envolvidos tinham cuidado de só agir quando não havia mais luz, para não  ter flagrante. “Fica escuro, as câmera não pega”, afirmou o preso ouvido. “num tem um horário certo... tem dia que fica a noite ligada inteira, tem dia nem liga”, relatou sobre o sistema de vigilância.

O depoente confessa que ajudava na transmissão do recado, mesmo sem saber de forma cabal quem escrevia.

“Olha, eu não tenho 100% de certeza de quem vinha e quem escrevia, mas passava pra minha mão, vinha da cela 2 até na cela 6. Se estiver correto o número de cela; independente as celas, mas vinha da frente até o final”, afirmou aos promotores.

Nas declarações dadas pelor ele, preso desde 2017 por integrar esquema de tráfico de drogas em Campo Grande, participaram da troca de mensagens Jamil Name, Jamil Name Filho, o policial civil Vladenilson Olmedo e o ex-guarda civil Marcelo Rios, todos presos pela operação Omertà como integrantes de organização criminosa.

A testemunha protegida livrou da acusação o policial Márcio Cavalcanti da Silva, o "Corno", também alvo da investigação e preso desde setembro de 2019.

“O único lá que não se envolveu de mandar escrever, nunca, foi o Márcio”, afirmou.

O presídio federal de Mossoró, onde aconteceu a troca de bilhetes de forma irregular. (Foto: Mossoró Hoje)
O presídio federal de Mossoró, onde aconteceu a troca de bilhetes de forma irregular. (Foto: Mossoró Hoje)

Dinheiro - No depoimento, o homem detalha inclusive qual a disposição dos envolvidos nas celas. Diz ainda ter ouvido falar, nas poucas vezes em que houve manifestação verbal, sobre pagamento de valores a Marcelo Rios. O ex-guarda civil, conforme a acusação, chegou a começar a negociar colaboração premiada, assim como a mulher dele, Eliane Benitez Batalha..

“Uma vez só, o Jamil pai falou que era pra pagar o dinheiro do Marcelo e pronto. Ele mandou: é pra pagar e pronto”, afirma. “Ele citou cem mil reais (R$ 100.000,00) e um valor de salário todo mês”. Quem receberia, disse, é Eliane, a esposa de Marcelo.

Marcelo Rios está na ponta inicial de toda a investigação. Com a prisão dele, em maio de 2019, a polícia chegou a paiol mantido pela organização, em uma casa no Monte Líbano.

O valor pago mensalmente, conforme o depoimento, seria de 6 a 10 mil, mas Marcelo, convivente do preso no ambiente prisional, estava reclamando de não receber. “Ah, ele comentou comigo porque eu mora na, depois de uns cinco meses mais ou menos, eu fui morar na vivência com ele. Ele tava bem chateado porque achou que ia receber ce... pelo menos o dinheiro pra os filhos dele, e “num” e “num” tava caindo nada, nem advogado nem nada”, citou.

Conforme a fala do preso, nas anotações apreendidas havia ordem para matar “dois promotores do Gaeco e o Peró”. O recado, afirmou, saiu do presídio por meio de advogados e de visita a Jamil Name Filho.

Para a investigação, trata-se na verdade do promotor Tiago de Di Giulio, do defensor Rodrigo Stochiero e do delegado Fabio Peró, titular do Garras.

Denúncia – Para os responsáveis pela investigação e pela denúncia, o conteúdo desse depoimento, aliado a outros elementos – “análise de dados extraídos de telefones celulares, análise de dados obtidos por afastamento de sigilo telemático e interceptações telefônicas -  ratifica a importância e as ligações dos personagens indicados no documento apreendido no Presídio Federal de Mossoró.

Para a acusação, as informações contidas contidas no papel confirmam plano para matar agentes públicos de Mato Grosso do Sul, “a mando de Jamil Name e Jamil Name Filho.”

Além de pai e filho, essa ação traz como denunciados mais seis pessoas. O juiz do caso, Roberto Ferreira Filho, da 1ª Vara Criminal, ainda não apreciou a denúncia. Portanto, as defesas ainda vão se manifestar.

De antemão, o advogado David Olindo, de Sidrolândia, um dos acusados, apresentou petição reclamando de não estar conseguindo se defender em outros autos da Omertà e pedindo para serem avocados pelo magistrado.

Em geral, desde que a apreensão das anotações veio à tona, as defesas questionam a credibilidade do preso, agora testemunha protegida. Ele foi transferido para Campo Grande em abril do ano passado e cumpre pena no presídio de segurança da Gameleira, também conhecido como "Supermáxima".

Os acontecimentos agora transformados em peça acusatória foram alvos da segunda fase da Operação Omertà, em 18 de março de 2020, quando foram cumpridos mandados de busca, apreensão e prisões contra suspeitos.

Policiais chegam ao Garras durante a segunda fase da Operação Omertà, que apreendeu provas sobre plano de ataque a autoridades. (Foto: Arquivo/Campo Grande News)
Policiais chegam ao Garras durante a segunda fase da Operação Omertà, que apreendeu provas sobre plano de ataque a autoridades. (Foto: Arquivo/Campo Grande News)


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