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Cidades

Ex-integrantes do PCC, jovens buscam no artesanato o caminho para liberdade

Jovens de 19 e 17 anos se envolveram com facção e estão internados por latrocínio e homicídio

Aletheya Alves | 28/11/2021 09:05
Pulseiras feitas pelos internos na Unei Dom Bosco, em Campo Grande. (Foto: Kísie Ainoã)
Pulseiras feitas pelos internos na Unei Dom Bosco, em Campo Grande. (Foto: Kísie Ainoã)

“Entrei na facção em 2019. Me indicaram para eles e me chamaram para participar da linha”. “Minha finada esposa que me apresentou para o crime, me apresentou para o PCC. Ela já tinha vínculo com a facção”. Cumprindo medidas socioeducativas na Unei (Unidade Educacional de Internação) Dom Bosco, Tiago*, de 17 anos, e Ian*, de 19, têm “mergulhado” em artesanatos para pensar sobre suas histórias e conquistar liberdade.

Nesta semana, a equipe da Unei ofereceu um dia de recreação com exposição de artesanatos produzidos pelos internos e, em um curto período, Tiago contou sobre como tem “pago a dívida” por matar em um tribunal do crime. Logo em seguida, Ian explicou que após morar nas ruas da Capital, foi apreendido pela polícia por latrocínio.

Ao lado de uma mesa cheia de artesanatos, os dois resumiram que têm se dedicado às dobraduras de papel para deixar os crimes enterrados na Unei e focar na educação.

Adolescentes e jovens se dedicam ao artesanato como modo de pensar durante a privação de liberdade. (Foto: Kísie Ainoã)
Adolescentes e jovens se dedicam ao artesanato como modo de pensar durante a privação de liberdade. (Foto: Kísie Ainoã)

Morador da região sul de Campo Grande, Tiago perdeu a liberdade há um ano e quatro meses, após participar de um tribunal do crime do PCC (Primeiro Comando da Capital). “Me chamaram, eu estava em uma casa em que tinham vários disciplinas. Me chamaram para ir lá, cheguei e tinha um homem faccionado e a gente matou ele, um do CV (Comando Vermelho)”.

Durante uma ação recreativa na Unei, vestido com a camiseta verde da SED (Secretaria de Estado de Educação), o adolescente acabou tentando resumir sua vida em sete minutos de entrevista. Sendo “disciplina” do PCC aos 16 anos, Tiago era responsável por comandar e aplicar as regras da facção em seu bairro antes de ser capturado pela polícia.

Se lembrando de quando o campinho de futebol do bairro deixou de significar brincadeira, o adolescente explicou que conheceu o tráfico a céu aberto com 13 anos. “Foi por amizade no bairro mesmo, no campinho de futebol, vendo a gurizada vendendo droga. Comecei com uma caixa, que é de 10 gramas. Eu só vendia, não usava”, disse.

Como se estivesse com os braços presos, incomodado, ele só se tranquilizou depois, quando mostrou seu presente em formato de porta-retratos, pulseiras e cestas de papel em cima de uma mesa. Mas retornando à linha do tempo, Tiago narrou que após três anos traficando no bairro, foi indicado para a facção.

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Entrei em 2019, me indicaram e me chamaram para participar da linha. Aprender como era o “bom dia”, o “boa tarde”, pegar o entendimento e aí comecei no crime. Fiz a primeira cobrança, que era agredir de disciplina e depois matei", conta Tiago.

Sem dizer se foi seu primeiro assassinato, Tiago explicou que o tribunal do crime em que participou ocorreu a uma quadra de sua casa. “Eu sabia que era uma agressão quando fui chamado, mas não que era para matar. Eu era disciplina do bairro. Minha família só soube que eu fazia parte depois que vim para a cadeia”.

Mudando de assunto, ele completou que nunca dedicou todo o tempo de seu dia às tarefas da facção, “de dia, eu trabalhava e de noite, é que traficava. Quando eu sair daqui, vou abrir um lava-jato e preciso só terminar o último ano da escola. Fiz o primeiro e o segundo ano aqui na cadeia”.

Mais tranquilo, ele foi para a lateral da mesa que reunia diversos artesanatos. “Eu aprendi a fazer no dia que eu cheguei aqui. Quase todos que estão aqui eu que fiz, só não sei fazer aquele ganso ali. Tem pulseiras também, porta-retratos e suportes para guardar outras coisas”, conta.

Ainda de acordo com Tiago, foram as dobraduras que o tiraram do “vício” em pensar sobre continuar nos crimes. “Eu tô pagando minha dívida aqui, mas quero ir embora e ficar tranquilo, trabalhar. Isso que penso agora”.

Da rua aos porta-retratos - “A gente fica fazendo o artesanato para não ficar pensando que a gente tá batendo a nave. Aqui é bom porque tem horta, a gente faz curso e pensamos sobre o que a gente fez lá fora”, Ian, de 19 anos, conta ao lado de porta-retratos que fez com papéis. Em 2020, ele foi encontrado pela polícia após matar um homem enquanto roubava seu carro.

Porta-retrato é um dos objetos construídos a partir de papéis. (Foto: Kísie Ainoã)
Porta-retrato é um dos objetos construídos a partir de papéis. (Foto: Kísie Ainoã)

Explicando sobre como chegou até o dia do latrocínio, Ian disse que sua vida passou a ser a vida do crime em 2019. “Eu estava no interior com meu pai e ele me abandonou depois que se casou. Vim para cá e fiquei três meses morando na rua até que minha finada esposa me apresentou para o crime, para o PCC”.

De acordo com o jovem, ele começou a roubar para si mesmo, mantendo o vínculo com a facção. “Eu fui aprofundando mais na parte do crime e no dia do latrocínio, eu estava precisando roubar, precisando das coisas em casa e acabei roubando. Roubei um carro”, explicou.

Sem dar maiores detalhes sobre o que aconteceu naqueles momentos, Ian explicou que hoje, seus pensamentos estão direcionados aos três filhos. “O tempo que estou aqui dentro, podia muito bem estar lá fora, cuidando deles. Quando eu sair daqui, quero ter um serviço e ficar tranquilo, cuidar dos meus filhos”.

Questionado sobre o período que conheceu sua esposa até sua apreensão em 2020, Ian disse rapidamente que outros crimes tomaram conta da sua história. “Bem antes do latrocínio, em 2019, minha esposa foi estuprada e estrangulada dentro da minha casa. Foi por guerra de facções”, diz.

Jovem explica que tem se dedicado a pensar sobre seu futuro com os filhos. (Foto: Kísie Ainoã)
Jovem explica que tem se dedicado a pensar sobre seu futuro com os filhos. (Foto: Kísie Ainoã)

Ian relatou que morava com outro jovem e ambos participavam do PCC naquela época, mas o fim da narrativa foi a morte de sua esposa, “ele roubava comigo e chegou a um certo ponto em que não estava mais dando certo ele morar comigo. Mandei ele embora, aí ele virou de outra facção e acabou matando ela [esposa] por conta das guerras das nossas facções mesmo”.

Pensando no futuro, o jovem contou que imagina permanecer na Unei por pelo menos três anos, uma vez que o tempo não foi definido. Enquanto isso, traça estratégias para conseguir se manter a salvo quando sair do local, “tenho medo do que pode acontecer com meus filhos, no sentido da facção e de outras pessoas também. Não quero sair daqui e ficar me escondendo, quero sair e poder ir na feira, ir ao shopping. Vou pagar pelo o que fiz e quero uma vida nova”.

Como se tivesse combinado o final da entrevista com Tiago, Ian se aproximou dos artesanatos e completou que tem se dedicado a eles como modo de recuperação. “É bom porque a gente não pensa só nas coisas ruins, consegue mudar a cabeça e pensar em outra vida”.

Sistema socioeducativo - Conforme o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, as medidas têm como objetivo responsabilizar os adolescentes em relação aos atos infracionais cometidos, sempre que possível, dando enfoque à reparação. Neste sentido, proporcionando a posterior integração social.

No caso das Uneis, a medida aplicada é a de internação. De acordo com a legislação, não há prazo determinado, sendo que a manutenção precisa ser reavaliada, no máximo, a cada seis meses.

Entre os direitos dos adolescentes privados de liberdade, estão a recepção de visitas, estar sempre informado sobre sua situação processual, receber escolarização, profissionalização e ter acesso a atividades culturais, esportivas e de lazer.

(*) Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos adolescentes e das famílias.

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