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Comportamento

“Boa conduta” une histórias de três garotos, pegos por roubo e latrocínio

Adolescentes contam como foram parar dentro da Unei Dom Bosco e como encaram a segunda chance

Aletheya Alves | 12/06/2019 06:53
Entre grades, a quadra com cobertura é utilizada pelos adolescentes para jogar futebol diariamente. (Foto: Paulo Francis)
Entre grades, a quadra com cobertura é utilizada pelos adolescentes para jogar futebol diariamente. (Foto: Paulo Francis)

Vindo de bairros e cidades diferentes, histórias de envolvimento com o crime se cruzam no contato com a terra dentro da Unei (Unidade Educacional de Internação) Dom Bosco. É entre a plantação de alface, ou em serviços de manutenção e distribuição de marmitas, que três adolescentes tentam recuperar o que há tempos perderam: a permissão de conviver em sociedade.

Distribuídos em quatro alas, 22 “alojamentos” regulares e três de triagem, os 80 adolescentes se revezam entre os ambientes externos e internos. 

Participar das aulas, ficar ao sol e jogar bola são os direitos iniciais para quem precisa ser “reeducado”. Aprender a mexer com horta e ter liberdade para ajudar nos trabalhos de manutenção são privilégios conquistados com o decorrer do tempo, de acordo com o diretor da Unei, Odair Marcelo Gomes Selles. “O adolescente quando chega é mais complexo, porque ele não tem limites, não é acostumado a ir na aula, não é acostumado a ter horário para acordar, para dormir, então você vê a mudança conforme o tempo”, conta.

Sementes e materiais para uso na horta são comprados pelos funcionários da Unei. (Foto: Paulo Francis)
Sementes e materiais para uso na horta são comprados pelos funcionários da Unei. (Foto: Paulo Francis)
Campo para que os adolescentes façam exercício físico. (Foto: Paulo Francis)
Campo para que os adolescentes façam exercício físico. (Foto: Paulo Francis)

Do tráfico à plantação - Aprender a plantar e esperar o crescimento até chegar a colheita da pequena "safra" é uma das atividades realizadas por Pedro (*), que tem acesso à horta graças ao bom comportamento. “A gente coloca o alface pequenininho na terra, aí espera uns dias, tira ele, depois coloca de novo. Trampa ali, e tem uma horta da hora. A gente planta alface, salsa, cebolinha, pimenta, pimentão, um monte de coisa. Dá tudo bonito”.

Há quase dez meses internado, o adolescente foi obrigado a trocar o tráfico e o roubo por um cotidiano marcado por horários. Há momento para acordar, ir para aula, jogar bola, “tomar sol”, ajudar na manutenção da Unei, comer e dormir. Tudo o que, segundo ele, não tinha desde seus 14 anos, quando aceitou sair para roubar com alguns colegas pela "primeira e única vez", acreditando que “era bom o que era proibido”.

Pouco mais de uma hora foi o tempo necessário para abordar a vítima, correr, ser encontrado durante rondas e receber os primeiros conselhos da mãe. “Eu tava perto do terminal General Osório. A gente tava procurando dinheiro pra ir no fervo, daí os guri deram ideia de ir roubar. Eu e mais quatro guri, a gente tava na rua. Roubamos uma pessoa. A Polícia Militar pegou a gente na frente da escola, a vítima tava dentro do carro e reconheceu a gente (sic)”, relatou.

Pedro garante que hoje a vontade é de repensar os atos e descobrir caminhos que não façam sua mãe retornar para visitas em “um lugar igual a esse aqui”. Ele diz que tomou coragem para dizer “eu te amo” ali dentro, quando a saudade começou a apertar logo depois que a mãe virava as costas. “Toda vez que eu ligo pra ela, falo que amo. Antes eu não sabia falar, minhas irmãs falaram até que ela chorou quando escutou da primeira vez”.

Foi durante as aulas, com um dos professores da Unei, que o garoto redescobriu as possibilidades de futuro. “Tô com vontade de fazer Engenharia Civil, o professor ficava falando que fez Engenharia quando tava com 30 anos. Eu sou novo, dá tempo”.

Vindo do Nordeste, o interno espera reconstruir a vida em Campo Grande. (Foto: Paulo Francis)
Vindo do Nordeste, o interno espera reconstruir a vida em Campo Grande. (Foto: Paulo Francis)

Aos 13 anos ele conheceu a maconha na saída da aula. Quando tinha 14 foi apreendido por roubo. Saiu da Unei e, com 16, começou a vender drogas. Foi em uma praça próxima da escola que viu o cenário do qual iria pertencer pouco tempo depois: adolescentes combinando pontos de venda, consumindo e indicando novatos para entrar no esquema. “Eu ia pra escola e aí aparecia droga numa praça perto. Eles começaram a me oferecer, aí comecei a vender e quis continuar. No dia que me pegaram por tráfico, eu tava numa casa armazenando droga. Aí, quando vi já tava algemado pela polícia. Lá a gente guardava e vendia (sic)”.

Sempre falando sobre culpa e responsabilidade, Pedro repete em diversos momentos o quão presente sua mãe esteve desde a primeira vez que foi apreendido e explica que, se alguém tem culpa, esse alguém não é ela. “Ela sempre foi um exemplo. Eu fui porque tinha curiosidade demais. A primeira vez ela achou que eu tava num fervo, aí ela foi lá me dar conselho. Mas quando a gente tá nessa vida aí, a gente não pensa em nada. A culpa é nossa mesmo”.

Marcos virou traficante aos 13 anos e hoje espera recuperar a liberdade. (Foto: Paulo Francis)
Marcos virou traficante aos 13 anos e hoje espera recuperar a liberdade. (Foto: Paulo Francis)

Há nove meses internado na Unei Dom Bosco, a esperança na segunda chance cresce com o sonho de ser marceneiro para Marcos (*). Os últimos oito meses foram de estudos intensos. Rotina bem diferente do menino que virou traficante aos 13 anos. O adolescente se formou no último mês em um curso profissionalizante. “Já mexi com obra aqui na reforma do pavilhão, você aprende com horta, com limpeza. Hoje faço cinto, pulseira, filtro do sonho, porta-retrato”.

Com o tempo vieram também as lições sobre como administrar empresas e a própria vida. “Aprendi a falar direito, vou voltar para casa falando assim porque ajuda a mudar minha vida, a largar a vida das drogas. Antes eu falava muito mais na gíria. Hoje tô tirando a gíria no jeito de falar”.

Apreendido por tráfico, roubo e direção perigosa, Marcos explica que invés de manusear pacotes de maconha e cocaína, quer fazer artesanato e ganhar dinheiro com marcenaria. “Fiquei mexendo com droga porque o dinheiro vinha mais fácil. Tenho moto, tenho carro, mas coisas que vêm fácil, também vão fácil. Não adianta. Prefiro comprar coisa com meu suor, dura bem mais”, garante.

Meninos depois de atividades na área externa da Unei Dom Bosco. (Foto: Paulo Francis)
Meninos depois de atividades na área externa da Unei Dom Bosco. (Foto: Paulo Francis)

“Alvejaram minha casa” - Medo e angústia passaram a fazer parte da vida de Marcos, assim como de sua família, quando completou 16 anos. Depois dos 15, resolveu alugar sua própria casa para morar com a namorada. Comprou televisão de plasma, cama box, geladeira, fogão e ar condicionado. Em uma noite, resolveu sair para comer pizza e quando retornou, a casa inteira havia sido alvejada. “Os caras foram lá em casa, meteram tiro. Me mudei para outro bairro e comecei a ficar com medo de ir para rua encontrar com os guris que iam querer me matar. Aí ficava em casa”.

No caso dele, a Unei é vista atualmente como uma salvação. “Se não tivesse vindo pra cá, ia morrer. Minha mãe e minha vó ficavam me falando para eu sair, para não morrer igual meu tio que morreu por causa disso. Ele mexia com droga também e acabou morrendo com 18 anos”.

O adolescente conta que desde criança convivia com o tráfico no bairro e lidava com suas consequências. “Vi os caras atirando no cara na rua, sentado do meu lado”. Marcos lembra que, entre os tiros que já disparou ou recebeu, o único que o acertou veio de um policial que o viu vendendo droga.

Aqui tem guerra - Questionado sobre a convivência na Unei, Marcos conta que os outros internos tentaram matá-lo logo que chegou. “Os caras tentaram me furar com ferro por causa de guerra de bairro. Eu falei que era do bairro e eles vieram pagar de louco, aí bati em um deles e veio os outros junto (sic)”.

O desafio na Unei é ficar longe das confusões. “Aqui tem guerra de pavilhão, guerra por causa de bairro. Mesma coisa que lá fora. Só que aqui é mais fácil de você morrer né, pode parar na mão de qualquer um, em qualquer hora”.

Envolvido em “problemas de convivência” pela última vez há três meses, o adolescente se uniu a outro para tentar matar um interno que teria estuprado uma criança. Então, surgiu mais um ensinamento, comenta o garoto. “Fiquei me arrependendo de ter feito o que eu fiz, não sou Deus para acusar ninguém. Pensei sozinho. Eu não sou juiz, delegado, ninguém pra acusar as pessoas do que elas fizeram”, explica.

Marcadas pelo uso da enxada, as mãos falam do trabalho de manutenção na Unei. (Foto: Paulo Francis)
Marcadas pelo uso da enxada, as mãos falam do trabalho de manutenção na Unei. (Foto: Paulo Francis)
Olhando para baixo, João contou que sente falta de comer os doces feitos pela mãe. (Foto: Paulo Francis)
Olhando para baixo, João contou que sente falta de comer os doces feitos pela mãe. (Foto: Paulo Francis)

Saudade de casa - Tempo e liberdade são as duas palavras destacadas por João (*), outro adolescente que está internado há quase 12 meses e pouco antes da entrevista ajudava nos reparos da estrutura, na entrada da Unei. Com enxada na mão, o jovem exercia uma das atividades propostas para reeducação e que garante a saída dos alojamentos. É um jeito de passar o tempo, enquanto, segundo ele, tenta esquecer a passagem por latrocínio aos 17 anos e focar na mudança do futuro.

João conta que hoje passa mais tempo fora dos pavilhões, enquanto os outros internos gritam para se comunicar entre as grades. De acordo com o adolescente, a maior parte do dia é utilizada para estudar e trabalhar na horta. “Fico lá carpindo. Eu limpo, rastelo, um monte de coisa, aí depois volto para o 'x' (quarto de internação) e almoço. Depois tem aula, aí a gente aprende as coisas lá. Não fico lembrando do que fiz não, foi muito rápido".

O garoto conta que na família não é o único que perdeu a liberdade. Garante que foi parar na Unei por um impulso de sobrevivência. "Fui lá (assalto) com a minha irmã, aí ela queria roubar a casa do cara e ele acordou e colocou ela na parede com um facão. Ele ia matar ela, aí eu dei uma paulada nele. Não sabia que tinha matado (sic)”.

Enquanto espera a volta para casa, o adolescente relata que aprendeu a passar o tempo lendo gibis e desenhando durante as aulas. Sem projetos complexos para o futuro, João explica que pensa no agora e quer deixar de lado confusões que possam piorar sua situação. “Minha mãezinha falou que tava querendo que eu vá embora, falou que vai me buscar aqui. Só vi ela duas vezes desde que tô aqui, dá saudade né. Meu pai vai arrumar um emprego pra mim, quero estudar só e trampar”.

Quando pensou sobre o que mais sente falta, não hesitou em dizer: "minha mãe". Mesmo distante, ele diz que sente que o amor é recíproco.

Fazer parte dos 20% que retornam para a Unei após repetir o erro ou mudar o rumo da vida e não voltar a ver o interior da unidade são as opções desses três adolescentes. Para o diretor da Unei, Odair Marcelo Gomes Selles, as atividades realizadas durante a internação dão base para mudança de pensamento, mas é necessário que haja acompanhamento da família e boas oportunidades por parte da população.

(*) Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos adolescentes e das famílias.

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