ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
MAIO, TERÇA  06    CAMPO GRANDE 23º

Cidades

"Óbito a qualquer momento" é a frase que ninguém quer ouvir em boletim da covid

Mensagens escritas ou por áudio trazem aos familiares notícias de quem está internado com covid-19

Paula Maciulevicius Brasil | 29/12/2020 08:39

Dona Luzia está num estado grave. Está em uso de noradrenalina devido à instabilidade hemodinâmica em altíssimas doses. O padrão respiratório mantém parâmetros altos a ventilação. O quadro renal é muito grave e a parte hemodinâmica também. Teria indicação de diálise, mas não tem condições hemodinâmicas de realizar diálise. Está em tratamento conservador, com medidas clínicas, mas elas são limitadas em relação ao tratamento da disfunção renal. Já está sem sedação, não tem qualquer sinal de despertar. É uma paciente com quadro muito grave e pode evoluir a óbito a qualquer momento".

Em 57 segundos de áudio, o médico passa o quadro de Luzia Morel, paciente de 73 anos com covid-19 internada no box 10 do CTI do Hospital Proncor, em Campo Grande. A mensagem encaminhada pelo WhatsApp à filha narra o quadro da mãe nas últimas 24 horas e encerra trazendo a informação que ninguém quer ouvir.

Ficar sabendo sobre o estado de um familiar pelo boletim médico é frio e distante. Ouvir que sua própria mãe pode vir à óbito a qualquer momento, dilacerador.

"Óbito a qualquer momento" é a frase que ninguém quer ouvir em boletim da covid
Foram 28 dias de internação até o óbito e durante 24 deles, a família sabia notícias de dona Luzia pelos boletins médicos. (Foto: Arquivo Pessoal)

Na tarde do dia 10 de dezembro, uma quinta-feira, as filhas de dona Luzia, Lucia e Luzimar, receberam o boletim tremendo e já esperando a ligação que viria do hospital noticiando a partida da mãe.

Foram 28 dias de internação até a morte de Luzia. Durante 24 deles, depois das 16h, o coração quase saía pela boca. Os boletins chegavam entre 17h30 e 18h, e a depender do médico de plantão, poderia vir sucinto ou mais explicativo. O último contato com a mãe, por mensagem, foi em 18 de novembro, quando ela foi levada para leito de UTI.

"Me lembro que quando chegava perto do horário que eles costumavam enviar o boletim, eu começava a ficar ansiosa, inquieta. Vinha aquela coisa: 'o que será que aconteceu com a minha mãe de ontem pra hoje?' E ao mesmo tempo que era uma coisa muito pesada, também era tranquilizador de certa maneira, porque eu sabia que ela tinha passado as 24h, que graças a Deus ela teve mais 24h", recorda Lucia Morel, jornalista aqui do Campo Grande News.

"Óbito a qualquer momento" é a frase que ninguém quer ouvir em boletim da covid
Print do grupo criado pela família de Luzia para compartilhar os boletins e informações do quadro de saúde da paciente internada pela covid-19.

Cada dia era um médico diferente a informar os procedimentos feitos e como a paciente estava reagindo. As filhas criaram um grupo no WhatsApp onde encaminhavam o boletim para os "Amigos de Luzia". Eram 25 membros na corrente de oração pela recuperação.

Depois do último boletim, as filhas se seguraram na fé e pararam tudo para orar. A sala de casa deu lugar a uma vigília pedindo pela recuperação de Luzia. No coração, a filha Lucia acreditava que se até 8h da manhã ninguém do hospital tivesse telefonado, é porque a mãe tinha resistido.

Lucia acordou às 8h01 do dia 11 de dezembro, uma sexta-feira, sem registros de chamada no celular. Por volta das 10h, o telefone tocou. Era o marido dizendo que o hospital havia tentado falar com ela e sem conseguir, ligou para ele pedindo a presença das filhas no local. "Passamos lá e eles informaram o óbito. Ela faleceu às 8h da manhã de sexta-feira".

30 dias de boletim - Foi no final de julho que seu Carlos Carpejani, até então com 69 anos, foi internado no Hospital Regional, com diagnóstico de covid-19. Há 15 anos na vida da enteada Daniele Lucas Voria, foi ela quem ficou como contato do hospital para receber os boletins médicos.

Antes de intubar, as notícias de Carlos vinham dele mesmo, por telefone. Depois, as informações passaram a ser os boletins.

Você recebe todos os dias um arquivo em PDF, eles colocam as iniciais do paciente para preservá-lo e também a numeração dele. A família já sabe quem é e aí vem a descrição: estado grave, estado gravíssimo", conta Daniele.

O padrasto ocupava a ilha 4 do CTI da covid-19 e todos os dias, entre 16h e 17h, chegava o arquivo. "A gente ficava esperando, abria, pegava a inicial dele e lia: estado gravíssimo e aí falava o que tinha acontecido, se ele teve que fazer hemodiálise", recorda.

Para entender o boletim, a família recorria a um familiar que "desvendava" os termos médicos. "Ele até teve um período de melhora, a gente criou esperança de que ele sairia. Ele chegou a sair do estado gravíssimo para o grave", lembra.

"Óbito a qualquer momento" é a frase que ninguém quer ouvir em boletim da covid
Carlos Carpejani com a enteada Dani no casamento dela em 2019. (Foto: Arquivo Pessoal)

Seu Carlos fez 70 anos intubado. No dia do aniversário, a família enviou uma mensagem de voz para que fosse colocado no ouvido do paciente dentro do CTI. "Colocaram pra ver se ele reagir, era uma mensagem da gente falando que amava ele e estávamos esperando". Carlos não resistiu e morreu no dia 23 de agosto.

O psicológico da enteada ficou muito abalado e até hoje, quando a hora do boletim chega, ela revive a sensação. "Um mês antes foi meu tio, minha prima que recebia os boletins e mandava pra família. Estávamos assim desde junho, foram meses que pra você não ficar emocionalmente doente, é difícil", desabafa.

O sentimento de viver à espera acompanha a analista. "Você fica em função da expectativa daquela mensagem e até depois que a pessoa faleceu você pensa: 'nossa, hoje não tem nenhuma notícia ruim que vai chegar?' É uma sensação estranha, mesmo já tendo a notícia da morte", descreve.

"Óbito a qualquer momento" é a frase que ninguém quer ouvir em boletim da covid
Sem velório, sepultamento de vítima de covid é distante e com toda proteção para funcionários. (Foto: Arquivo/Henrique Kawaminami)


Nos siga no Google Notícias