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Cidades

Pilha de cadáveres: a cada 4 dias, uma mulher teve fim decretado por feminicida

Nos primeiros 39 dias do ano, 9 mulheres foram torturadas, estupradas, espancadas ou esfaqueadas até a morte

Anahi Zurutuza | 09/02/2022 06:30
A foto não foi tirada em 2022, mas não poderia ter imagem melhor para ilustrar a reportagem; este sangue é de enfermeira foi morta pelo ex-marido em frente ao Hospital Regional de Campo Grande, em janeiro de 2016. (Foto: Fernando Antunes/Arquivo Campo Grande News)
A foto não foi tirada em 2022, mas não poderia ter imagem melhor para ilustrar a reportagem; este sangue é de enfermeira foi morta pelo ex-marido em frente ao Hospital Regional de Campo Grande, em janeiro de 2016. (Foto: Fernando Antunes/Arquivo Campo Grande News)


“Não importa onde você esteja. Não importa sua classe social. Não importa sua profissão. É perigoso ser mulher”. Com a frase, em “Mulheres Empilhadas”, a escritora brasileira Patrícia Melo discorre o caráter “democrático” dos crimes praticados por homens contra mulheres. E é só piscar os olhos para ter essa realidade escancarada, bem ali, na esquina.

Em Mato Grosso do Sul, até esta terça-feira (8), o intervalo para respirar entre um feminicídio e outro foi de em média quatro dias. Torturadas, estupradas, espancadas, esfaqueadas até a morte. Nos primeiros 39 dias de 2022, nove mulheres, com idades entre 15 e 103 anos, foram brutalmente assassinadas no Estado. O número é 80% superior ao registrado no mesmo período de 2021, quando foram registrados 5 homicídios em razão do gênero.

A pilha de cadáveres sufoca até quem está na linha de frente. “Fico um pouco assustada com relação a esse aumento exponencial. Enquanto profissional, devo destacar que em Campo Grande, elucidamos rapidamente 100% dos casos e temos dois feminicidas presos. Mas, enquanto mulher e componente de uma sociedade, admito ser um número alarmante”, afirma a delegada Maíra Pacheco, uma da profissionais do time da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) da Capital.

Delegada Maíra Pacheco em entrevista no saguão da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher). (Foto: Kísie Ainoã)
Delegada Maíra Pacheco em entrevista no saguão da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher). (Foto: Kísie Ainoã)

A estatística também desnorteia. “Não entendo a razão desse aumento. Só podemos justificar que estão envolvidas aí todas as faces da violência doméstica. O machismo, a misoginia. Além disso, a sociedade vem de um estresse há dois anos, por causa da pandemia, o que é um fator pode potencializar a violência dentro de casa. Mas não há uma explicação lógica”, comenta.

Sobre os dois crimes investigados pela Deam de Campo Grande, um detalhe, prova que por puro machismo, Francielli e Natalin tiveram as vidas interrompidas, chamou a atenção da delegada: elas eram mães de crianças que não eram filhos biológicos dos companheiros.

Não admitiram que as mulheres tivessem independência. Estavam em relacionamentos perdidos. Não aguentaram”, destaca Maíra Pacheco.

Assim como ficou claro nos 10 mil casos de feminicídio sem solução nos tribunais brasileiros que inspiraram o romance de Patrícia Melo, lançado em 2019, fica evidente nos recentes casos registrados em Mato Grosso do Sul, que as vidas dessas mulheres, para eles, não valem quase nada:

Luana Alves Furtado, 29 anos.
Luana Alves Furtado, 29 anos.
Natalin Nara Garcia de Freitas Maia, 22.
Natalin Nara Garcia de Freitas Maia, 22.

Luana Alves Furtado, 29 anos – Morta pelo namorado Gabriel Ferreira Neves, de 21 anos, nesta terça-feira (8), com dez facadas, em Costa Rica. O casal estava junto há 3 anos, entre idas e vindas. O que levou o rapaz a esfaquear a namorada ainda é mistério, porque ele tirou a própria vida horas depois do crime.

Natalin Nara Garcia de Freitas Maia, 22 anos – Assassinada no dia 4 e teve o corpo encontrado na tarde de domingo, dia 6, em Campo Grande. O 2º sargento da Aeronáutica, Tamerson Ribeiro Lima de Souza, 31 anos, confessou ter matado a esposa com um mata-leão, durante uma discussão, porque ela teria chegado em casa embriagada. “Ela não me achava homem por não revidar”, foi uma das frases ditas por ele em depoimento, sobre as brigas do casal.

Roseli Alves da Cruz, de 38 anos – Morreu no domingo, dia 6, quase um mês depois de levar oito facadas do marido Alvimar Pereira Viana. Ele contou que cometeu a violência depois de ser chamado de corno.

Vitória Caroline de Oliveira Honorato, 15 anos
Vitória Caroline de Oliveira Honorato, 15 anos
Francielli Guimarães Alcântara, 36 anos.
Francielli Guimarães Alcântara, 36 anos.

Vitória Caroline de Oliveira Honorato, 15 anos - Desapareceu no dia 25 de janeiro e teve o corpo foi encontrado no dia 29, em Ivinhema. Foram presos pelo crime Lucas da Silva Cordeiro, 23 anos, Nilton Fernandes de Souza, 39 anos, e José Antônio dos Santos, 60 anos. Nilton, vizinho ciumento que viu a vítima crescer, era o principal suspeito de cometer o crime, que ainda não foi completamente desvendado.

Francielli Guimarães Alcântara, 36 anos – Morta na madrugada do dia 26 de janeiro, estrangulada com uma corda, após passar cerca de um mês em cárcere, sendo torturada por Adailton Freixeira da Silva, de 46 anos, no Bairro Portal Caiobá, em Campo Grande. O motivo: jogou na cara do marido que tinha um amante e que o bebê de 1 ano e 8 meses, criado com o casal, não era filho dele.

Marta Gouveia dos Santos, 37 anos.
Marta Gouveia dos Santos, 37 anos.
Rosiclei Paredes, de 39 anos.
Rosiclei Paredes, de 39 anos.

Marta Gouveia dos Santos, 37 anos – Estava desaparecida desde às 6h30 do dia 23 de janeiro, um domingo, quando saiu para pedalar e não voltou para casa, em Nova Andradina. O corpo foi encontrado pelos amigos, por volta das 16h30, à margem do anel viário, que liga a rodovia MS-276 com a MS-134. Conforme as investigações, ela foi atingida com 30 facadas e pode ter sido estuprada pelo próprio filho, Matheus Gabriel Gonçalves dos Santos, de 18 anos. A polícia apura se o jovem planejou o crime após duas brigas com a mãe.

Rosiclei Paredes, de 39 anos – Encontrada morta em uma fossa no fundo da residência onde morava, no Bairro Jardim Alvorada, em Bandeirantes, no dia 22 de janeiro. A vítima foi estuprada e assassinada a facadas. O crime foi confessado por Eduardo Gomes Rodrigues, de 53 anos, homem que dividia aluguel de uma casa com a vítima.

Paulina Rodrigues, de 103 anos - Morta espancada pelo genro, Celestino de Souza, 91 anos, na cidade de Tacuru, no dia 16 de janeiro.

Marli Fonseca Tavares, de 38 anos –  Agredida pelo companheiro no Natal, em Sete Quedas, e morreu no dia 15 de janeiro. O suspeito foi preso.

Delegada Elaine Benicasa, titular da Deam, em entrevista. (Foto: Henrique Kawaminami/Arquivo)
Delegada Elaine Benicasa, titular da Deam, em entrevista. (Foto: Henrique Kawaminami/Arquivo)

Luz no fim do túnel? – Os números assombrosos até fazem parecer que não há esperança, mas Maíra Pacheco afirma que é preciso acreditar para mudar essa realidade. “Como profissional da área, a gente tem de enxergar luz no fim do túnel. Em 2020, tivemos 12 feminicídios em Campo Grande e no ano passado, foram dois. Eu enxergo sim, não só na prevenção junto as vítimas, mas na conscientização do agressor”.

Para a delegada titular da Deam da Capital, Elaine Benicasa, o fortalecimento das políticas públicas voltadas às vítimas de violência doméstica, ampliação do acesso à informação e a resposta rápida da polícia para proteger as mulheres e resolver crimes quando o pior não puder ser evitado estão entre as medidas necessárias para reverter o quadro. “Com fortalecimento da rede, as informações chegam mais rápido, coesas, eficazes às mulheres, que se sentem empoderadas e fortalecidas e, uma vez vítimas da violência doméstica, elas procuram as delegacias, registram ocorrências e pedem medidas protetivas, que evitam sim o agravamento de condutas anteriores dos agressores”, disse em entrevista ao portal da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública).

“Mulheres Empilhadas” também fala sobre a importância da denúncia. Numa das passagens, a avó admite para a protagonista: “Sua mãe morreu por causa desse silêncio. Essas mulheres morreram porque não conseguiram falar. Não falar - disse ela - é uma tragédia”.

Maíra concorda. Para a delegada, o combate à epidemia de feminicídios é missão de todo mundo. “É preciso denunciar. Foi-se um tempo em que ninguém podia se envolver em briga de casal. Vizinho, familiares têm de denunciar”.

Disque 180 (Central de Atendimento à Mulher, do governo federal), ligue 190 (emergência da Polícia Militar).

A Deam funciona 24 horas na Rua Brasília, s/n, no Jardim Imá, bairro próximo ao Aeroporto Internacional de Campo Grande.

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