Sistema bilionário de monitoramento da fronteira falha sem integrar segurança
Fronteira é frágil também pela ausência das forças armadas, o que escancara rota do crime
O Brasil enfrenta um desafio colossal no combate ao crime organizado na extensa faixa de fronteira que compartilha com dez países sul-americanos, dos quais 1.490 quilômetros estão nos limites entre o Estado de Mato Grosso do Sul, o Paraguai e a Bolívia.
RESUMO
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O Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), criado há 12 anos para controlar as fronteiras brasileiras, enfrenta sérias dificuldades de implementação. Com apenas duas das nove fases concluídas e orçamento estimado em R$ 12 bilhões, o projeto sofre com falta de recursos e baixa integração entre órgãos de segurança. Em contraste, o governo federal aposta no Centro de Cooperação Policial Internacional da Amazônia (CCPI), inaugurado em Manaus, que utiliza tecnologia avançada e cooperação internacional. O novo modelo, liderado pela Polícia Federal, já conta com participação de países vizinhos e sistema de monitoramento de alta precisão para combater crimes transfronteiriços.
Um dos pilares da estratégia nacional de defesa, o Sisfron (Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras) foi concebido para ampliar o controle sobre essas regiões e fortalecer a presença do Estado. Passados mais de 12 anos desde sua criação, o Sisfron ainda não cumpre suas promessas.
Autoridades da segurança pública relatam desconhecimento do sistema, ausência de uso integrado e apoio das FA (Forças Armadas) apenas pontual. Parlamentares questionam a efetividade do programa e a real disposição das FA em atuar no enfrentamento ao narcotráfico, comércio ilegal de armas e contrabando.
Anunciado como a grande ferramenta de defesa nacional e apoio às polícias, o Sisfron é caro, já ultrapassou em pelo menos cinco anos o cronograma de conclusão e não chegou à metade das etapas previstas. O mais preocupante é seu uso restrito ao EB (Exército Brasileiro) e o raro emprego em operações integradas, que deveriam ser permanentes na vigilância da fronteira, por onde passam drogas, armas e produtos contrabandeados.
Das nove fases de um projeto orçado em R$ 12 bilhões em 2010, apenas duas estão concluídas: a que atende aos pelotões de fronteira no Estado do Amazonas e à 4ª Brigada de Cavalaria Mecanizada, sediada em Dourados (MS), uma das áreas mais sensíveis ao tráfico pela infraestrutura rodoviária da região.
O senador Alessandro Vieira (MDB-SE), autor da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) anunciada na terça-feira, 17 de junho, declarou ao Campo Grande News que a investigação vai focar a atuação institucional na faixa de fronteira entre Mato Grosso do Sul, Paraguai e Bolívia, regiões reconhecidas como rotas do tráfico e zonas de atuação de facções brasileiras.
A CPI pretende avaliar o papel de cada instituição envolvida e o funcionamento do Sisfron. Segundo o parlamentar, que é delegado da PF (Polícia Federal), o enfrentamento ao crime organizado na fronteira exige reforço de pessoal e uma nova articulação entre os órgãos civis e militares.
Para ele, as ações em curso são insuficientes e a comissão vai identificar o que funciona e o que precisa ser reformulado, com foco na alocação adequada de recursos e na proposição de soluções efetivas. A CPI será instalada após o recesso parlamentar, com orçamento inicial de R$ 30 mil e prazo de quatro meses para produzir um diagnóstico completo sobre os gargalos no combate ao crime e apresentar propostas de reforma orçamentária e legislativa.
O deputado estadual Carlos Alberto Davi dos Santos, o coronel Davi (PL), ex-comandante da PM (Polícia Militar) estadual, afirma que o Sisfron é praticamente desconhecido entre os operadores civis de segurança e inteligência na fronteira com o Paraguai e a Bolívia.
Segundo ele, autoridades federais e estaduais envolvidas diretamente no combate ao crime transfronteiriço não têm clareza sobre a utilização atual do sistema. Uma fonte da segurança pública do Estado reforça que o Exército Brasileiro atua apenas quando solicitado, e de forma pontual. A percepção geral é de que o sistema é caro, ineficaz e invisível.
O próprio EB atribui os atrasos na execução à falta de recursos, agravada por sucessivos contingenciamentos no orçamento do MD (Ministério da Defesa), que destina mais de 80% dos R$ 133,6 bilhões previstos para este ano ao pagamento de pessoal. Enquanto isso, o crime organizado avança sobre as lacunas deixadas pelo Estado.
Estimativas do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e da organização Esfera Brasil, com base em dados do UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), indicam que facções teriam movimentado cerca de R$ 335 bilhões em 2024, caso a cocaína apreendida tivesse sido exportada para a Europa.
As polícias brasileiras, segundo os dados, interceptam menos de 10% da droga que circula pelas fronteiras. Atualmente, há ao menos 72 facções ativas no país, sendo o PCC (Primeiro Comando da Capital) uma das mais influentes, com atuação direta no Paraguai e na Bolívia.
Criado em 2010, o Sisfron prevê a integração de sistemas de sensoriamento, análise de dados e resposta operacional. O plano inicial era cobrir 16,8 mil quilômetros de fronteira, abrangendo uma faixa de 150 quilômetros em 510 municípios de 11 estados, o que corresponde a 27% do território nacional.
O sistema incluiria radares, sensores, drones, centros de comando e tropas integradas com as forças policiais. Na prática, apenas o trecho da fronteira em Dourados e parte da região amazônica que faz divisa com Colômbia, Peru e Venezuela foram contemplados até agora.
Em resposta ao Campo Grande News, o EB informou que outras três fases estão em andamento, incluindo áreas em Mato Grosso, Roraima, Amazonas, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O próprio MD admite, em material interno, que o programa avança de forma fragmentada e carece de financiamento constante e apoio político de longo prazo.
Relatórios do Exército confirmam que o cronograma foi alterado diversas vezes e que a execução está aquém do previsto. O sistema ainda opera de forma reativa e isolada, sendo acionado apenas por solicitação dos estados, sem uso contínuo pelas polícias e sem compartilhamento pleno de dados.
O coronel Wagner Ferreira da Silva, da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), reconhece que o Sisfron não é uma ferramenta de uso direto da segurança pública e que o Exército Brasileiro contribui de forma limitada, como no fornecimento de comunicação em áreas sem cobertura.

A crise institucional entre as Forças Armadas e a Polícia Federal, agravada pelas investigações sobre a tentativa de golpe em 2022, criou um clima de desconfiança e distanciamento. Embora não haja manifestações oficiais, há sinais de retração. A Operação Protetor, idealizada para integrar civis e militares no patrulhamento das fronteiras, perdeu força. A baixa interoperabilidade tecnológica entre os órgãos de segurança e defesa é um obstáculo que persiste.
A CPI, segundo seus idealizadores, quer romper com esse ciclo de abandono. O objetivo é ouvir profissionais da segurança pública e apresentar soluções factíveis. A atuação das facções, hoje presentes inclusive dentro de estruturas do Estado, é tratada como uma ameaça à soberania nacional.
No cotidiano da fronteira, policiais relatam que operações bem-sucedidas ainda dependem da experiência e da articulação direta com forças estrangeiras, mais do que do suporte tecnológico prometido pelo Sisfron. Um exemplo recente é o de um carregamento de 1,5 tonelada de maconha apreendido após perseguição.
A droga havia cruzado a fronteira com o Paraguai. Só houve prisão porque os pneus do veículo foram furados por disparos. Segundo fontes, sem a ação direta da patrulha, o sistema tecnológico não teria evitado a fuga.
O Sisfron, que deveria garantir vigilância constante, continua operando de forma parcial, sem integração com as demais forças e distante das necessidades reais das fronteiras. Sem revisão da política e superação da competição institucional, a lacuna seguirá sendo explorada pelas organizações criminosas.

Na Amazônia, PF assume liderança contra o crime transnacional
Enquanto o Sisfron avança lentamente, o governo federal aposta em outro modelo de combate ao crime nas fronteiras. O CCPI (Centro de Cooperação Policial Internacional da Amazônia), inaugurado na terça-feira, 17 de junho, em Manaus, adota uma estratégia baseada em tecnologia de ponta, articulação internacional e inteligência compartilhada. A unidade pretende enfrentar crimes ambientais, tráfico e mineração ilegal com atuação em rede.
Durante o evento, o MJ (Ministério da Justiça) defendeu o papel das FA como garantidoras da soberania. Por outro lado, a direção da PF reforçou que a eficácia virá da cooperação entre países, uso de satélites, drones e inteligência artificial. O CCPI já conta com representantes da Guiana e do Suriname e deve integrar polícias dos nove estados da Amazônia Legal e forças estrangeiras de nove países.
A principal ferramenta do centro é o sistema Córtex, desenvolvido pela Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), capaz de monitorar desmatamento, garimpo ilegal, queimadas e invasões em áreas protegidas com precisão de até três metros. O sistema permite recortes temporais e geográficos que otimizam a resposta policial.
Enquanto isso, o EB segue desenvolvendo o Sisfron em ritmo lento. Apenas duas das dez fases estão finalizadas. Entre os equipamentos usados está o radar SABER M20, com alcance de 20 quilômetros, fabricado pela Embraer. O sistema, no entanto, opera isoladamente, sem conexão direta com bancos de dados da PF ou das polícias estaduais.
O contraste é nítido. O CCPI aposta na integração imediata e já está em funcionamento. O Sisfron, mesmo após mais de uma década de planejamento, depende de investimentos e sofre com disputas de protagonismo entre defesa e segurança pública.
O CCPI foi viabilizado com recursos do Fundo Amazônia, totalizando R$ 36,7 milhões, e integra o Plano Amazônia: Segurança e Soberania, que destina R$ 318,5 milhões para ações na região. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ampliou em 470% os financiamentos ao Amazonas, com foco na aquisição de satélites, helicópteros e lanchas.
O presidente do BNDES, Aloízio Mercadante, apontou que o crime na região é agravado pela vulnerabilidade social e ambiental. O MJ avalia a criação de uma agência internacional para combate ao crime organizado, semelhante à Agência Internacional de Energia Atômica.
Para o secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubio, o novo centro representa um avanço estratégico. Segundo ele, o único caminho possível para conter o avanço das facções é a atuação conjunta entre polícias nacionais, estaduais e forças estrangeiras.
A ausência de menções diretas às FA na estrutura do CCPI reforça a leitura de que a PF assumiu a liderança no combate ao crime transnacional na Amazônia. Enquanto o discurso político ainda tenta equilibrar modelos, a prática aponta para uma nova direção: mais tecnologia, mais integração, menos dependência da caserna.