Militar não pode ser poupado em guerra contra o crime na fronteira, diz general
Empoderamento do PCC pressiona Forças Armadas a apoiar combate às quadrilhas que ameaçam MS
Graduado pelo Instituto Militar de Engenharia (IME), no Rio de Janeiro e PhD pela Universidade da Califórnia, em San Diego, Estados Unidos, o general da reserva do Exército Umberto Andrade conhece como poucos os desafios e riscos que representam para o país o território sem controle na faixa de fronteira entre Brasil e Paraguai, em Mato Grosso do Sul, a maior trincheira do crime organizado no Sul do continente.
RESUMO
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General defende atuação das Forças Armadas no combate ao crime na fronteira. O general da reserva Umberto Andrade defende a atuação das Forças Armadas no combate ao crime organizado na fronteira entre Brasil e Paraguai. Ele argumenta que a região, principal porta de entrada de drogas e armas no país, exige uma ofensiva conjunta de órgãos públicos, incluindo os militares, cada um atuando em sua especialidade. Andrade destaca a presença de um grande efetivo militar na fronteira, que raramente se junta aos órgãos civis em operações. Ele cita experiências malsucedidas de intervenções militares no Rio de Janeiro e na Amazônia, mas ressalta a necessidade de integração entre as forças de segurança, com foco em resultados. O general sugere a participação do Exército em operações planejadas na fronteira, com duração de um mês ou mais, para interromper o movimento de criminosos e o fluxo de mercadorias ilegais. Ele defende que o comando da operação seja centralizado, com autoridade e conhecimento para integrar as demais forças. O professor Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, concorda com a participação militar, considerando a faixa de fronteira um território de domínio das Forças Armadas. Ele sugere o uso da rede de quartéis na região para apoiar as ações da Polícia Federal. Andrade destaca a importância das operações de inteligência e o combate à lavagem de dinheiro, visando enfraquecer o poder financeiro das facções criminosas.
Estudioso das estratégias de guerra, ele não tem dúvidas de que só a cooperação entre os países e uma ofensiva conjunta de órgãos públicos brasileiros, incluindo os militares, mas cada um atuando na sua especialidade, pode dar resultados. “Numa guerra como essa não é mais possível poupar de trabalho as Forças Armadas”, disse o general ao Campo Grande News.
Andrade contraria a lógica conveniente das autoridades de Defesa, segundo a qual não é papel dos militares se envolver em ações de combate à delinquência comum. Ele lembra que foi bom para a imagem do Brasil participar de missões da ONU para combater gangues urbanas em outros países, como no Haiti.
Mas avalia que soa contraditório, diante do avanço do tráfico, das milícias e, sobretudo de organizações criminosas como PCC e Comando Vermelho, que os militares virem as costas para o que ocorre na “Favela da Maré”, no Rio, ou na fronteira por onde escoam do Paraguai e Bolívia as drogas e armas que abastecem o crime nos centros urbanos.
Nas regiões de fronteira, por necessidade de proteção do território e soberania do país, estão distribuídos os maiores e mais bem treinados efetivos da tropa terrestre do Brasil. O problema é que esse efetivo, estimado em mais de 20 mil homens das Forças Armadas, raramente se junta aos órgãos civis em operações na fronteira, onde a Polícia Federal também tem a prerrogativa de atuar.
Em dois episódios da história recente, a intervenção no Rio de Janeiro, em 2018, gerida pelo general Walter Braga Netto, preso atualmente sob acusação de planejar o golpe de Estado, e as operações na região Amazônica, sob o comando do general e hoje senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ex-vice-presidente da República, com o comando operacional sob controle, os militares acumularam fiascos e não produziram resultados que tenham sequer arranhado o crime. O Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido pelo general, gastou cerca de R$ 550 milhões em operações contra desmatamento e outros crimes.

Integração
O general Andrade afirma que o crime foi se diversificando e evoluindo num nível que exige das forças de segurança profissionalismo, compartilhamento e efetiva integração dos órgãos públicos em ações objetivas, estratégicas e com o foco em resultados. “O crime está empedrado. Não é mais possível poupar os militares desse esforço, como também não é possível isolar desse trabalho as forças municipais”, ressalta.
Para o general, a sociedade e, em particular grandes empresas - que atuam nos mercados com estratégia correlata à caserna -, precisam acordar para o que representa hoje o crime organizado. “Não adianta largar tudo nas mãos dos políticos, dos generais e muito menos dos coronéis de polícia já corrompidos. A sociedade precisa acordar. Cada um pode ter seu papel”. No caso do Exército, diz ele, seria razoável que as autoridades civis procurassem o Estado Maior e o chefe do Coter (comando terrestre) em busca de um formato de cooperação que não comprometa a missão principal do Exército.
Na parte da fronteira do Mato Grosso do Sul, afirma o general, é possível disponibilizar, durante um período estabelecido em operação planejada, que pode durar um mês ou mais, batalhões instalados em pontos estratégicos para vigiar e interromper o movimento de criminosos ou o fluxo mercadorias do Paraguai e Bolívia. “Se o comando vai ficar com um delegado, o general vai ter de se subordinar a ele. O importante é que quem for chefiar tenha autoridade, comando, conhecimento e integre as outras forças”.
Fluxo Financeiro
Historiador e especialista em militarismo, o professor Francisco Carlos Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), considera a faixa de fronteira um território de domínio das Forças Armadas, o que torna legítimo que os militares tenham jurisdição sobre tudo o que remeta à ação e inteligência na região, e atuem como força de apoio à Polícia Federal em ações contra o crime.
Na sua avaliação, em eventual plano que esteja em elaboração para desmantelar as organizações, a participação dos militares deveria se dar de forma natural. “Essa estrutura já existe. É a rede de quartéis que pontilham a fronteira. É só colocar ela para funcionar. E nem precisa de uma GLO (convocação de operações de Garantia da Lei e da Ordem). É missão das Forças Armadas garantir as fronteiras, que são territórios especificados, típicos de atuação militar”, afirma Teixeira. Ele lembra que Peru e Bolívia, onde estão os produtores de cocaína, são outras regiões em que a presença militar seria um bom reforço para as ações policiais.
O historiador conta que há algum tempo acompanhou pessoalmente o trabalho de uma guarnição militar de fronteira para evitar que fossem montadas rotas alternativas de tráfico pelo Acre, na fronteira com o Peru. Nessa ocasião, pinguelas foram derrubadas e pistas de pouso clandestinas danificadas por explosivos, interrompendo a atividade criminosa e facilitando o trabalho da polícia.

Como oficial formado na escola de comando do Estado Maior do Exército, especializado em engenharia, o general Umberto Andrade diz que uma vez definido um plano, é necessário que os órgãos públicos atuem sob unidade de comando, com centralidade nas operações de inteligência e com princípios estratégicos adequados aos objetivos da ofensiva. “O Exército tem tropa preparada para uma ação integrada”, garante, o general.
A meta, segundo o militar pode tanto ser uma ação para desgastar os grupos criminosos, eliminar as lideranças ou interromper o fluxo de armas, drogas ou do dinheiro que abastece as quadrilhas e financia o crime, o que requer um novo enfoque repressivo e a participação de organismos especializados em lavagem de ativos, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). O poder financeiro de facções como o PCC está no balanço da própria Polícia Federal: no ano passado foram confiscados das quadrilhas mais de R$ 5,6 bilhões em dinheiro e bens de alto valor.
Também foram apreendidas pela PF 75 toneladas de cocaína, o equivalente a cinco vezes mais o valor dos ativos bloqueados, sem que isso tenha interrompido a ação das organizações criminosas, que acusam o golpe, assimilam as perdas, mas seguem sempre em frente. Ainda assim, o ataque às finanças e as apreensões, se consolidaram como a ação central de maior efeito no combate ao tráfico, bem mais importante do prender os criminosos. No final, esse cenário se repete ano a ano na já clássica “operação de enxugar gelo”, com o crime se organizando cada vez mais e os órgãos de controle disparando em diferentes direções.
Visão superada
O caminho para um apoio do Exército, Marinha e Aeronáutica para um plano integrado com as forças civis esteve obstruído desde o golpe que derrubou a monarquia. Na nova ordem, que emergiu com a decisão dos altos comandos de não mais permitir intervenções na política, os militares devem se unir às demais forças para desmantelar estruturas criminosas que afetem o dia a dia da população ou ameacem a democracia.
Em recente abordagem, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, colocou os militares no pelotão de enfrentamento e alertou que a dimensão alcançada pelo crime já não pode mais ser reduzida “apenas com os limitados recursos” dos governos estaduais.
“Quando consideramos que a Polícia Federal, as Forças Armadas, o COAF, a Receita Federal e o Banco Central são instrumentos federais, torna-se evidente que uma estrutura robusta para o combate ao crime organizado já existe em estado latente. O que falta é a articulação sistemática e a coordenação estratégica que permita a plena realização deste potencial”, disse o ministro.
O general Umberto Andrade explica que havia nas Forças Armadas entendimento segundo o qual o entrosamento com outros órgãos no combate ao crime representava “desvio de finalidade”. É uma visão superada, embora a Constituição defina que os militares têm como atribuição a defesa da pátria e a garantia dos poderes constitucionais, sem implicar, como ficou claro em recente decisão do STF, em tutela ao poder civil.
A PEC enviada pelo governo ao Congresso facilita o entrosamento entre os órgãos federais e estaduais ao propor a constitucionalização do sistema único de segurança, medida que inibe inciativas isoladas e coloca a integração no centro do combate ao crime.
Francisco Carlos Teixeira diz que o papel dos militares é facilitar as ações das polícias, apoiando, com o uso de material e equipamentos pesados, a destruição dos meios a serviço do tráfico nas regiões de fronteira. “Não estou falando de militar sair caçando traficante no meio do mato, que é função específica de polícia. Nem é aconselhável ter soldado do Exército combatendo o narcotráfico, até porque alguns podem morrer ou até a operação militar dar errado, o que seria altamente desmoralizante para as forças armadas”. Ao contrário da polícia, que tem expertise, o militar não foi preparado para enfrentar o crime e, segundo o especialista, poderia sucumbir diante de um inimigo “poderoso e muito bem financiado”.