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Capital

Atraso em exames da covid em MS empurra corpos “suspeitos” às funerárias

Família de senhor de 75 anos quase ficou sem se despedir porque havia suspeita de covid-19 e seria proibido velório

Izabela Sanchez e Maressa Mendonça | 18/06/2020 09:39
De máscara, homem observa corpo de mulher que morreu pela covid ser enterrado em Campo Grande (Foto: Henrique Kawaminami)
De máscara, homem observa corpo de mulher que morreu pela covid ser enterrado em Campo Grande (Foto: Henrique Kawaminami)

Na última semana, dia 10 de junho, família e amigos lotaram, contra as regras municipais, o velório de Jorge Silva dos Santos, 50 anos, o “Jorginho”, investigador da Derf (Delegacia Especializada de Roubos e Furtos), assassinado na tarde de terça-feira (9), junto com o colega, também investigador, Antônio Marques Roque da Silva , de 39 anos, em Campo Grande. Dias depois, mais um golpe para a família de Jorginho: o pai, Raul, também faleceu, vítima de complicação cardíaca.

Foi o coração que não aguentou a morte do filho, acredita a família. Mas até que pudesse se despedir de Raul José dos Santos, que faleceu aos 75 anos, a família levou um susto: a equipe médica da Santa Casa classificou o caso como suspeita de covid-19. Se não fosse a insistência da família em postergar o encaminhamento do corpo para funerária, ele teria sido enterrada em caixão lacrado, à distância e sem velório, uma determinação do protocolo do Ministério da Saúde para evitar contágio do novo coronavírus.

Não é o único caso. O Campo Grande News conversou com representantes de funerárias em Campo Grande que acreditam que a demora nos resultados dos exames de diagnóstico, que leva às vezes mais de 3 dias, está impedindo que algumas famílias não acompanhem os enterrados e, dias depois, descubram que a vítima nem sequer tinha a covid-19.

Valquíria Joyce Corvalã é irmão de Jorginho. Perdeu o irmão e o pai na mesma semana e conta que o pai já sofria de problemas cardíacos. Ela acredita que a morte do irmão “agravou a situação”. Raul começou a sentir-se mal no domingo (14). Levado à Santa Casa, faleceu às 23h, segundo a família.

“Teve insuficiência respiratória e a informação que recebemos é que era chance de até 80% de ser problema cardíaco e 20% chance de ser covid e o caixão tinha que ser lacrado”, conta ela. Apreensivos com a possibilidade, todos que tiveram contato com Raul buscaram o Parque Ayrton Senna, onde a Prefeitura improvisou centro de triagem.

Valquíria lembra que, por serem assintomáticos, não fizeram teste para diagnóstico. “O médico alertou sobre essa questão de que ele poderia não ser covid”, contou. Ele foi enterrado pela Pax Nacional. O Campo Grande News tentou contato com a funerária por dois dias, sem sucesso.

Com o vai e vem, ao menos um alento: o resultado do exame deu negativo para covid. Nesse meio tempo, o padrinho de Raul deixou de vir de Três Lagoas, por medo de contágio, já que é um idoso de 98. Ela reclama que o hospital sequer avisou da mudança de protocolo após confirmar o resultado.

“Poderia ser enterrado igual bicho”, conta ela. Às 17h de segunda-feira (15), Raul foi enterrado.

Família se despede à distância em enterro de uma das vítimas da covid em Mato Grosso do Sul (Foto: Henrique Kawaminami)
Família se despede à distância em enterro de uma das vítimas da covid em Mato Grosso do Sul (Foto: Henrique Kawaminami)

Funerárias – Para sepultamento sem risco de contágio, os corpos que configuram como mortes suspeitas de covid ou casos confirmados saem direto do hospital dentro do saco cadavérico e a família não pode ver ou tocar o corpo.Todas as pessoas que manipulam o cadáver usam EPI (Equipamento de Proteção Individual) da cabeça aos pés e no cemitério, o adeus é à distância. Não há velório e o caixão é lacrado.

Valdeci Alves Dias, da Pax Mundial, disse que, até agora, a empresa já realizou enterro de quatro pessoas que configuraram como casos “suspeitos”. Três dessas pessoas não confirmaram para covid, e um dos exames não ficou pronto. Ela disse que as famílias tentaram realizar velório, mesmo com o risco, “mas que os médicos batem o pé que é um caso suspeito”. “Eles cumprem a lei”, comenta.

“A testagem demora e não temos o que fazer. Caso suspeito, coloca no saco cadavérico, na urna, nos chamam, vamos com a roupa especial. Não tem nenhuma preparação. A família não pode chegar nem perto”, explicou ele.

Na última semana, conforme explicou, uma das famílias insistiu para esperar o enterro até que o resultado do exame ficasse pronto. “Tem sido motivo de sofrimento para a família, querem ter o velório”, diz. Valdeci, ainda assim, afirma que a média de enterros por mês continua a mesma: cerca de 55.

Wilson de Oliveira Junior representa a Pax Canaã e a Pax Universo. Conta que, em março, a Pax Universo também realizou enterro de um pessoa como “suspeito” e que, dias depois, não foi um caso confirmado de covid.

“Foi usado os protocolos corretos, mas depois infelizmente não era. A demora é muito grande, se fosse mais rápido esse teste seria melhor, para a família poder ter um velório. É um desrespeito e infelizmente temos que seguir o protocolo, não podemos correr o risco de transmitir”, diz ele.

Diretora da Pax Real do Brasil, Raíssa Ramos Ferreira Pedroli não quis “falar em números” porque disse que a empresa é apenas uma fatia desse segmento. Ainda assim, contou que desde março os números têm assustado. No início, conta, resolveram aplicar protocolo de contabilizar aumento nos enterros, chegada de casos de SARG (Síndrome Aguda Respiratória Grave) e suspeitos de covid-19, mas decidiu parar.

“No começo, nós começamos a rastrear e desde então está tendo um aumento bem significativo, fizemos o levantamento em março e abril e não para de aumentar. Paramos de contar, até pra nossa sanidade mental. É um serviço do Estado. O Estado deveria rastrear”, afirma.

Raíssa acredita que os impactos da desorganização e da falta de ritual de despedida nas mortes que cumpriram protocolo mesmo sem serem por covid-19 só serão sentidos no futuro. “A gente teve casos que depois que a família nos relatou que deu negativo, alguns exames saíram até no mesmo dia, mas as pessoas estavam no isolamento respiratório”.

“A falta do ritual de despedida é extremamente devastador, principalmente no processo de luto. A família já estava afastada, estava em isolamento, fica um período muito grande longe. E as vezes estava isolada em hospital durante 14 dias e não teve exame. Nós somos a sobra de um processo deficiente”, comenta a diretora.

Raíssa opina que o erro “começa no sistema de saúde”. “O problema está na assistência da pessoa. O ideal seria que conseguisse diagnóstico antes e quando chegasse na funerária a gente soubesse. A gente tem sepultado muitos com infecção respiratória, infecção nas vias aéreas, algumas não chegou nem a ser coletado o exame, o erro começa no sistema”, diz.

“São diversos [casos], é bem maior que o número de mortes confirmadas. Todos os dias desde que começou [a pandemia] a gente faz remoção de corpos com protocolo covid, que estavam em isolamento respiratório, que tiveram morte rápida. A gente não sabe como vai ser o impacto emocional, a gente vai ter a resposta dessas famílias, como vão conduzir a vida delas, depois. Se foi tratado como covid e era, ou não era, aquelas perguntas do luto, o que poderia ter sido”, comenta.

É o que também conta o agente funerário Sidney Oliveira Junior, da Pax Pró Vida. “A gente fica muito dependente do exame sair. Ontem aconteceu um caso comigo, o corpo estava no hospital, faleceu antes de ontem. Aguardamos até o meio dia e o médico assinou uma declaração atestando uma causa morte que não foi por covid. Se fica mais de um dia num hospital, é todo um constrangimento para a família”, diz ele.

Em outro caso, contou, uma pessoa já havia sido enterrada quando o exame confirmou negativo para covid. “Levou depois dois dias [para confirmar], a moça veio pegar o atestado e fiquei sabendo que deu negativo. Suspeitos já pegamos uns três mais ou menos e a maioria é hospital particular que está com mais ascendência”, conta ele, dizendo que o exame demora “em torno de 72h” para ficar pronto.

“Se o hospital está com 30 confirmados lá dentro e chega um com doença respiratória, já é direcionada para o setor de covid. De todo jeito vai pegar [a doença]”, finalizou ele, que não quis divulgar “nomes de hospitais”.

Dia de enterro de vítima, com desinfecção da carriola do cemitério (Foto: Henrique Kawaminami)
Dia de enterro de vítima, com desinfecção da carriola do cemitério (Foto: Henrique Kawaminami)

Procurada pela reportagem, a Santa Casa enviou nota por meio da assessoria de imprensa. Disse que Raul faleceu pouco depois de chegar ao hospital. “O paciente Raul José dos Santos, 75 anos, era cardiopata crônico e deu entrada no Pronto-socorro da Santa Casa no dia 14/6/2020 às 22h36, sendo trazido pelo Samu, com quadro gravíssimo de insuficiência cardíaca agravado por uma diarreia que já durava 3 dias devido ao uso de um xarope, vindo à óbito pouco depois, às 23h05”, diz a nota.

O hospital cita cumprir o protocolo do Ministério da Saúde para segurança sanitária. “Todo paciente que tiver algum desconforto respiratório deve seguir as recomendações de biossegurança para COVID-19 no atendimento. Foi o que ocorreu nesse caso, com o isolamento do paciente durante o período dos procedimentos (já que a insuficiência cardíaca pode levar à congestão pulmonar). O quadro dele não atendeu aos critérios para o diagnóstico do coronavírus, sendo somente relacionado à cardiopatia”, explica.

A Santa Casa diz que, até agora, apenas dois pacientes morreram e precisaram do exame para diagnóstico do coronavírus. “Nos dois casos o resultado do teste para COVID-19 foi liberado pelo LACEN no dia seguinte ao óbito”, diz.

O Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian afirma que, desde março, nenhuma pessoa que pudesse configurar como suspeita para covid foi internada, “já que todos os suspeitos são encaminhados para o hospital de referência”, comunicou, por meio da assessoria de imprensa, em alusão ao Hospital Regional Rosa Pedrossian.

A Unimed Campo Grande enviou nota por meio da assessoria de imprensa e diz que “tem como protocolo não repassar informações dessa natureza, como forma de preservar a integridade de seus pacientes e familiares”.

A Cassems, também por meio da assessoria de imprensa, disse que está em plano de contingência desde janeiro em todas as unidades ambulatoriais e hospitalares para enfrentar à pandemia, conforme preconiza OMS (Organização Mundial de Saúde). “Em todas as unidades há separação de atendimento aos pacientes sintomáticos respiratórios, ou seja, os que apresentam quadro clínico compatível com acometimento de síndrome gripal/síndrome respiratória entre elas Covid”, diz.

“No Hospital de Campo Grande, pela extensão e número de vidas, há o anexo em unidade de campanha. Nas demais unidades, são alas separadas. Os pacientes críticos são atendidos nas unidades de terapia intensiva em Três Lagoas, Dourados e Campo Grande. Os hospitais de Nova Andradina, Corumbá possuem unidades semicríticas. Temos uma rede de suporte de transporte e convênios com rede credenciada nos demais hospitais, mas há ala de preparo com equipes de saúde e suporte por ventilação mecânica para o atendimento necessário”, cita.

A Cassems afirma que “a maioria dos exames” leva de 3 a 5 dias para ficarem prontos. “Os testes rápidos de IGG e Ig M geralmente são solicitados em atendimentos ambulatoriais de acordo com o tempo de contato com portadores da doença. Desde o início da pandemia tivemos dois óbitos de beneficiários em nossa rede. Ambos com diagnóstico confirmado em PCR Covid 19. Uma paciente de Batayporã, que teve atendimento em Nova Andradina, sendo referenciada posteriormente ao Hospital de Dourados. A outra paciente, moradora de Dourados, deu entrada em nosso hospital de Dourados após atendimento em UPA”, destaca.

“Os pacientes internados, também por recomendação legitimada em boas práticas internacionais, não podem receber visitas. As famílias recebem boletim médico duas vezes ao dia e a equipe de assistentes sociais também faz o acolhimento com humanização e cuidado”, finaliza.

Procurado, o Hospital Regional não respondeu aos questionamentos até a conclusão da reportagem.

Por meio da assessoria de imprensa, a SES (Secretaria Estadual de Saúde), afirma que os exames são hoje realizados no Lacen (Laboratório Central de Saúde Pública de Mato Grosso do Sul), junto com a UFMS, UFGD e Embrapa, e que o tempo de até 72h “aumentou tendo em vista a alta demanda nos últimos dias”.

A SES afirma que os laboratórios liberam, em média, 550 exames por dia e destaca que a UFGD não realiza exames diariamente. “O Lacen chegou a liberar 775 exames em um único dia”, exemplifica.

“Os resultados ficam prontos entre 24 a 72 horas, após o recebimento das amostras. O prazo médio antes era de 48 horas foi estendido para o prazo médio 72h, entretanto, casos graves, SRAG e pacientes internados tem prioridade e o LACEN tem entregado resultados em tempo oportuno para viabilizar as ações de assistência e vigilância”, finaliza.

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