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Capital

Idosa constrói próprios sonhos após se dedicar aos outros por 40 anos

Flávia Lima | 05/03/2015 17:40
As dificuldades nunca tiraram o sorriso do rosto de dona Sônia (Foto:Marcos Ermínio)
As dificuldades nunca tiraram o sorriso do rosto de dona Sônia (Foto:Marcos Ermínio)

À primeira vista, dona Sônia Lúcia Gonçalves Leite, 75 anos, parece ser daquelas pessoas sérias, de pouca conversa. Desconfiada, ela abre o portão de sua casa simples, no bairro Taquarussu, analisando a equipe de reportagem e preocupada com a máquina fotográfica do colega Marcos Ermínio.

Nos primeiros minutos de conversa explico o objetivo do nosso encontro: retratar mulheres fortes que, apesar das adversidades, não se deixaram abater e conseguiram criar os filhos com coragem. Mesmo sem entender ao certo nosso propósito, ela começa a conversa de forma tímida, sempre perguntando se a imagem dela “iria sair na televisão”.

A preocupação era não mostrar a casa que ela considera desarrumada. “Ainda não consegui ajeitar meu canto do jeito que queria”, explica. Só depois das várias negativas de que as fotos não sairiam na televisão, ela começou ficar à vontade e deu início à narrativa de sua vida, totalmente dedicada a cuidar da família e da casa dos outros. Foram 40 anos como empregada doméstica, limpando, cozinhando e ajudando a educar os filhos que não eram seus, mas que ela faz questão de ressaltar que eram do coração.

Hoje aposentada, dona Sônia sobrevive com um salário mínimo de R$ 788,00, que conseguiu a duras penas, já que trabalhou sem registro na maioria das casas. Ela conta que fez um verdadeiro calvário, atrás de algumas famílias que a empregou e com a ajuda de amigos, há sete anos conseguiu o benefício. O valor é usado para pagar as contas de luz e água. As despesas de supermercado ela divide com o companheiro (que ela prefere chamar apenas de amigo) Antonio Sobrinho Alves, 82, que mora com ela há pouco mais de um ano.

Os três filhos, Eliane, 50, também doméstica, Eraldo, 51 e Euler, que ela não lembra a idade, casaram e constituíram suas próprias famílias, mas estão sempre com a mãe. Na pequena casa de quatro peças, com móveis doados, ela ainda ajuda a cuidar do neto Bruno, de cinco anos, que devido a um problema de nascimento, não fala e precisa frequentar a Apae.

Flashes de uma vida - Com a “memória fraca por causa da idade”, como gosta de brincar, ela se emociona ao lembrar dos trechos mais significativos de sua vida. A história de dona Sônia começou em Niterói, Rio de Janeiro, onde nasceu. Na época, sua mãe trabalhava para a família de um militar da Aeronáutica. Quando dona Sônia completou quatro anos, a mãe ficou doente e morreu. Antes, porém, implorou ao casal que cuidasse da filha. Os outros três irmãos, Edson, Vera e Cléia, ficaram com parentes e amigos.

Quando completou 15 anos, o marido de sua patroa foi transferido para Campo Grande e ela acompanhou a família. Ainda criança, dona Sônia se transformou na babá dos cinco filhos, além de tomar conta da casa. "Eles me acordavam de madrugada para fazer a mamadeira das crianças e acudir quando eles choravam", lembra. O início de sua adolescência caiu no esquecimento. "Minha vida era só trabalho", diz.

Após três anos, a família decidiu retornar a Niterói, mas dona Sônia tinha outros planos. Cansada da exploração, ela decidiu ficar em Campo Grande, mesmo sem amigos e família. "No dia da viagem de volta, eu me escondi no galinheiro da casa e fiquei lá até o taxi ir embora. Como não me achavam em lugar nenhum, foram embora. Até hoje não sei se eles me procuram", lembra em meio a risadas. Sozinha, dona Sônia conseguiu abrigo na casa de uma antiga cozinheira da família.

"A partir daí minha vida foi só trabalhar para sobreviver", recorda. Pouco tempo depois ela conheceu o marido, Manoel Joaquim da Costa Leite, com quem se casou aos 20 anos. Com o salário de doméstica e com o marido trabalhando como encanador, o casal superou dificuldades e criou os quatro filhos (um morreu aos 40 anos em um acidente de moto). Ao longo de 40 anos eles deram início ao sonho da casa própria, comprando um terreno no Taquarussu. A casa foi erguida aos poucos, com muita dificuldade enquanto as crianças cresciam.

Mesmo com os cômodos improvisados e móveis usados, dona Sônia faz questão de manter o mínimo de organização. (Foto:Marcos Ermínio)
Mesmo com os cômodos improvisados e móveis usados, dona Sônia faz questão de manter o mínimo de organização. (Foto:Marcos Ermínio)
Nos poucos momentos de lazer, ela gosta de se produzir e não dispensa a maquiagem. (Foto:Marcos Ermínio)
Nos poucos momentos de lazer, ela gosta de se produzir e não dispensa a maquiagem. (Foto:Marcos Ermínio)

Sonho em construção - Com a morte do marido, há dez anos, ela perdeu o grande companheiro, mas o sonho de ver sua casa organizada e concluída, com móveis novos não foi esquecido. "Trabalhei em casas que as pessoas tinham só coisas caras. Cristais, prataria, mas eu não preciso de nada disso. Quero só tudo limpinho e organizado, entrar numa casa com cheiro de novo, sabe?", sonha.

Na verdade, o sonho aumentou, já que ela começou a construir uma outra casa nos fundos do quintal para ajudar o filho Euler, recém-separado e que ainda não tem casa própria. A preocupação em sempre ajudar o próximo acabou apagando grande parte das lembranças das famílias para as trabalhou. "Minha vida foi sempre o trabalho e ajudar meus filhos e amigos. Acho que não lembro muito dos lugares que trabalhei porque nunca reclamei de nada. Sempre fui feliz", ressalta.

Dona Sônia enfatiza que a maioria das famílias sempre a tratou com respeito e carinho. "Naquele tempo era diferente, as pessoas tinham mais educação", diz. Uma ex-patroa, porém, marcou sua vida pela amizade que construíram e permanece até hoje. Dona Alda (ela não lembra o sobrenome) foi uma de suas primeiras patroas. Basta lembrar da amiga que os olhos se enchem de lágrimas. Apesar de trabalhar apenas três anos em sua casa, as duas se tornaram praticamente irmãs, tanto que elas se veem até hoje. Emocionada, dona Sônia mal consegue dizer o quanto a amiga é importante. "Ela sempre me ajudou em todas as horas", conta.

Emocionada ela pega um vaso de vidro dado pela amiga que ela guarda com todo o carinho. "Vou usar quando minha casa estiver ajeitadinha", afirma. Quando pergunto à ela o qual foi a maior lição que ela aprendeu ao longo de uma vida cheia de dificuldades, ela responde contando um fato que aconteceu na época em que ela trabalhava para uma importante família da Capital. Dona Sônia diz que nessa ocasião ela supervisionava um funcionário da casa que limpava os lustres de cristais da patroa. Após horas no exaustivo trabalho, ela pediu a cozinheira que servisse um copo de leite ao homem.

Quando entrou na cozinha e viu a cena, a patroa chamou a atenção das duas por darem leite ao invés de chá ao funcionário. "Achei isso muito feio. A gente tem que dividir o que tem, principalmente se é rico. Nunca sabemos o dia de amanhã", diz. E é essa filosofia de vida que ela passa para os seis netos e sete bisnetos, não apenas através de palavras, mas também das ações. Ainda hoje, quem chega em seu portão pedindo algum tipo de auxílio não sai sem uma palavra de conforto ou a promessa de ajuda. "Eu mesma não peço nada a ninguém. Deus já me deu o mais importante que é a saúde", afirma.

E é com essa disposição que ela às vezes, para ajudar no orçamento, se oferece para fazer companhia a idosos. "Quando é algum amigo nem cobro. Já passei várias noites no hospital acompanhando alguém internado", diz. Dedicando tanto tempo ao próximo, dona Sônia conta que nunca teve muito tempo para passear. "O máximo que faço é ir a igreja de vez em quando", conta.

Nos poucos momentos que reserva para si, ela conta que gosta de se produzir, escolhendo as roupas, a maioria dada por vizinhos e amigos. Dona Sônia também não dispensa uma maquiagem e um creme hidratante. Mas a aparência de sua casa não é esquecida um só minuto. "Não tira foto da minha cama porque não troquei o lençol e a sujeira pode aparecer", avisa ao fotógrafo.

Já no final da conversa peço a ela para falar sobre os momentos mais felizes de que se recorda. Ela então pega um álbum de fotos e começa a falar, emocionada, do marido e dos filhos, enquanto mostra os retratos antigos. E nesse momento, como num flash, ela se lembra de que nunca mais viu os três irmãos que ficaram em Niterói.

O pai, Manoel Francisco Gonçalves chegou a visitá-la há mais de 20 anos, mas depois também não deu mais notícias. "Nem sei quando ele morreu. Minha filha pediu os nomes das minhas irmãs para escrever para o Ratinho. Quem sabe eu ainda vejo meus irmãos antes de morrer", diz esperançosa a mulher que por 40 anos cuidou da família dos outros, mas nunca conseguiu ter a sua própria totalmente reunida.

Ao nos despedirmos e totalmente a vontade, ela nos convida a voltar para tomar um café e ainda insiste para eu levar um xarope dela. "Vi que você está gripada, tossindo, precisa se cuidar. Se precisar de alguma coisa, venha aqui", disse.

Além de ver a casa concluída, dona Sônia sonha em rever os irmãos que ficaram em Niterói. (Foto:Marcos Ermínio)
Além de ver a casa concluída, dona Sônia sonha em rever os irmãos que ficaram em Niterói. (Foto:Marcos Ermínio)
A família posa feliz no terreno recém comprado no bairro Taquarussu. (Foto:Marcos Ermínio)
A família posa feliz no terreno recém comprado no bairro Taquarussu. (Foto:Marcos Ermínio)
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