ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram Campo Grande News no TikTok Campo Grande News no Youtube
JUNHO, SEXTA  06    CAMPO GRANDE 28º

Capital

Se festa fosse possível, abre-alas de desfile seria dos profissionais da saúde

Mesmo diante de iminente perigo, profissionais da linha de frente deixam suas casas e se arriscam para cuidar do outro

Clayton Neves | 26/08/2020 08:45
Se festa fosse possível, abre-alas de desfile seria dos profissionais da saúde
Liane, Denise, César, Marly e tantos outros profissionais fazem com que estatísticas ganhem forma e se tarnsformem em histórias singulares e profundas. (Reprodução)

Campo Grande completa 121 anos com ar de estranheza. Pela primeira vez em meio século não vamos celebrar a data com o clássico desfile de 26 de agosto. Imprevisível, a pandemia da covid-19 alterou o calendário de celebrações e impediu entidades de entrarem na passarela da 14 de Julho para mostrar o trabalho que desempenham na cidade.

Mas, se tudo isso já tivesse passado, se fosse possível, em 2020 seriam os profissionais da saúde o abre-alas da celebração. Médicos, enfermeiros, trabalhadores do setor administrativo, nutricionistas, fisioterapeutas, técnicos de enfermagem. Os profissionais da linha de frente, que mesmo diante de iminente perigo, deixam suas casas e se arriscam  para cuidar do outro.

“O trabalho é de segunda a segunda, sem fim de semana. São 12, 14 e às vezes até mais horas dentro do hospital. Almoço em casa não existe, a gente emenda, come alguma coisa e volta a trabalhar”

Se festa fosse possível, abre-alas de desfile seria dos profissionais da saúde
Médica há 23 anos, Liane lembra que trabalho só é possível com união de time de profissionais de diversas áreas. (Foto: Arquivo Pessoal)

Repentinamente, a chegada da pandemia mudou a rotina da médica Liana Peres Duailibe, de 47 anos. Dividida entre os hospitais da Unimed e Regional, a pneumologista passou a dedicar-se totalmente aos pacientes internados com o novo coronavírus e deixou, inclusive, de atender no consultório particular.

Para a especialista, o dia começa às 5h30 da manhã, antes de o sol aparecer. Em casa, deixa os filhos de 18 e 30 anos, e só retorna quando os ponteiros do relógio já passaram das 21h.

No ritmo intenso de trabalho, onde cada minuto é indispensável, Liana lida com situações difíceis e rotina de perdas. Muitas vezes, precisa ser mensageira de notícias ruins, mas ainda assim, prefere fazer caminho inverso à correntes negativistas e se apega nos exemplos positivos que vivencia entre idas e vindas aos hospitais.

“Na semana passada um paciente saiu do CTI e quando fui vê-lo no quarto, ele contou que em setembro faria 30 anos de casado. Pediu que eu o ajudasse porque queria pedir a mulher em casamento mais uma vez. Atendemos ele com um quadro bem difícil e vê-lo sair do hospital foi surpreendente”, lembra.

Desde que o vírus chegou à cidade, a enfermeira Denise Ferreira, de 36 anos, também acompanhou mudar radicalmente os costumes no Hospital da Unimed, onde trabalha. Subitamente, viu acabarem os abraços de chegadas e partidas nas trocas de plantão, perdeu a presença de colegas que faziam companhia na mesma sala e ali, discutiam o planejamento de trabalho. Tudo agora é à distância e por telefone.

Ela conta que o horário do almoço é o momento em que a máscara apertada sai do rosto, e deixa à mostra marcas provocadas por horas ininterruptas com o equipamento que sufoca, mas que nessa altura, tem função vital. Aliás, o almoço agora também é sozinho e a pausa para o cafezinho não existe mais.

“Eu preciso me programar para tomar água e às vezes nem tomo porque para sair, preciso tirar cada item de proteção na ordem correta para não me contaminar. Depois tenho que higienizar as mãos e só então posso beber água ou ir ao banheiro”

Mesmo com tantas privações, Denise se diz apaixonada pelo o que faz, serviço diário que prefere chamar de missão. Mais do que em qualquer outro momento, hoje sabe que é fundamental o papel que desempenha com os pacientes que cuida, em um momento onde, inclusive, nem a família consegue estar.

“Antes de alguém ir para a UTI sou a última pessoa que ela vê. Pode ser que a última mão que ele está segurando é a minha, porque não sabemos se ela volta. Nesse momento a pessoa não tem opção e sei que precisa de mim”

Se festa fosse possível, abre-alas de desfile seria dos profissionais da saúde
Enfermeira há 5 anos, Denise trabalha no setor que atende pacientes contaminados com a covid-19. (Foto: Arquivo Pessoal)

Ainda assim, a enfermeira resiste ao título de "heróis", dados a profissionais da saúde na pandemia. “As pessoas dizem que somos heróis, mas não tem nada disso. Muitos fazem o que querem com a ideia de que vão ter a figura do herói para ajudar na necessidade. Enquanto isso, estou no serviço com vontade de ir no banheiro e não posso. Me angustia ver pessoas saindo para barzinho, chá revelação e eu sem poder estar com minha família e amigos".

César Lemes da Costa, socorrista de 54 anos, começa a jornada diária às 4h40. Enquanto faz alongamentos matinais, o técnico de enfermagem mentaliza orações pedindo proteção para o que há de vir.

Às 5h20, sai de casa no Bairro Zé Pereira, deixando para trás o pai, de 84 anos, a namorada e os filhos, de 23 e 29 anos. Pouco tempo depois, chega à base operacional do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) do Coronel Antonino para o confere necessário na viatura avançada que dirige durante todo o dia.

“Já perdi as contas de quantos pacientes com suspeita e com confirmação da covid-19 já carreguei. Lembro de um que chegou conversando em um CRS e quando sentou na cadeira, teve falta de oxigenação, precisou ser reanimado e entubado. Era covid”.

Exposto diariamente ao risco de contágio, César lembra que cuidados foram redobrados durante a pandemia, mas além disso, ele vê na fé o suporte para não desistir e não  se deixar ser intimidado pelo medo.

“Independente de crença, me sinto fortalecido e amparado por muitas pessoas e por minha família, que pedem a Deus por mim”.

No setor administrativo do Hospital Regional, Marly Arruda, de 54 anos, diz que vive uma história de amor com a unidade, que hoje é referência no atendimento a pacientes infectados pelo vírus. Veterana, lembra com precisão quando teve início a trajetória no HR. “Comecei no dia 6 de outubro de 2001”.

Em cinco meses, a coordenadora administrativa conta que os corredores do pronto-socorro onde trabalha já não são os mesmos. São evidentes as mudanças que a pandemia trouxe no hospital.

“Hoje está mais triste. Presenciamos a angústia das famílias, cada uma com sua história de sofrimento. Para nós, saber que um paciente morreu ou piorou, nos coloca de frente para as dores que essa pandemia trouxe” .

Se festa fosse possível, abre-alas de desfile seria dos profissionais da saúde
Veterana, Marly trabalha no setor administrativo do HR desde 2001 e diz viver relação de amor com o hospital. (Foto: Arquivo Pessoal)

Marly se diz privilegiada por ter saúde para conseguir cuidar de quem precisa. “Lembro de um sábado quando chegou um paciente especial com a covid. Na quarta-feira o irmão dele, que também era especial, precisou ser internado. No outro sábado a mãe deles, de 83 anos. Os dois meninos ficaram bem, ela não resistiu e morreu. Nesse dia chorei porque fiquei imaginando quem cuidaria daqueles meninos".

Desde o início da pandemia, 19.595 campo-grandenses já tiveram covid-19. Pacientes que deixaram de ser números ao subir na viatura conduzida por César, que ganharam nome ao segurar as mãos da Denise no momento de atravessar a porta de uma UTI. Pessoas que romperam a superficialidade das estatísticas e tornaram-se histórias profundas e singulares diante do olhar analítico da Liana.

Nos siga no Google Notícias