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Vida a cem reais: acidente e tragédia no dia de ganhar extra no trabalho

Viviane Oliveira e Aline dos Santos | 10/11/2015 08:00
No total, o curtume Qually Peles tem cinco tanques utilizados para descarte de pelos e limpeza de couro. No dia do acidente, os trabalhadores limpavam um deles. (Foto: Fernando Antunes)
No total, o curtume Qually Peles tem cinco tanques utilizados para descarte de pelos e limpeza de couro. No dia do acidente, os trabalhadores limpavam um deles. (Foto: Fernando Antunes)
Wellington relembra com tristeza a tragédia do dia 30 de agosto. (Foto: Fernando Antunes)
Wellington relembra com tristeza a tragédia do dia 30 de agosto. (Foto: Fernando Antunes)

Quando saiu para trabalhar e ganhar um extra de cem reais num domingo, Wellington não imaginava que uma tragédia se avizinhava. Naquele 30 de agosto, o rapaz de 23 anos entrou em coma, foi dado como morto e perdeu dois amigos em acidente num curtume de Campo Grande. Na ocasião, ele e mais três funcionários faziam a limpeza de tanque utilizado para descarte de pelos no Qually Peles. Num dado momento, já no final do processo, aspiraram produto tóxico.

Tudo poderia ser evitado se a empresa, no Bairro Indubrasil, seguisse as normas de segurança exigidas pela legislação trabalhista, como fornecer, no mínimo, equipamentos de proteção. Dois meses depois, Wellington de Brito Lima já voltou ao trabalho que lhe assegura renda de R$ 900. Mas o retorno à empresa é num contexto em que a gratidão de sobrevivente se soma à lembrança do dia em que um acidente matou seus amigos.

“Fiquei em coma três dos 18 dias internado. Os médicos não sabiam se ia sobreviver”, conta o rapaz. A memória revive aquele domingo em detalhes.

Exercendo a função de operador de tratamento de água, Wellington conta que todos estavam de folga e receberiam diária de R$ 100 para fazer a limpeza da caldeira, realizada de duas em duas semanas. Os trabalhadores utilizavam apenas botas de borracha e ficavam dentro do espaço de 4 metros de largura por 6 de profundidade.

Eles retiravam os resíduos para não entupir a mangueira da bomba, que levava o líquido até um dos caminhões para fazer o descarte. Enquanto isso, um deles controlava o equipamento. “Conforme retirava o lodo do fundo do recipiente, o gás tóxico foi subindo, mas a gente não tinha ideia de que uma tragédia estava prestes a acontecer”, relembra Wellington.

No acidente, morreram o motorista do caminhão pipa Leandro Cesário, 32 anos, e Roberto Carlos Prieto da Silva, 38 anos. Wellington e Ademir de Jesus Ribeiro sobreviveram.

Ademir desceu sozinho até o tanque e desmaiou. Na sequência, Roberto e Wellington foram atrás para ajudar e conseguiram acordar Ademir. Contudo, os dois passaram mal e também desmaiaram. No desespero, Leandro entrou no tanque para ajudar. “Depois que a equipe do Corpo de Bombeiros chegou, percebeu que eu estava respirando”, conta Wellington.

O rapaz ainda tem um ano de estabilidade no curtume e para não perder os direitos trabalhistas pretende ficar até vencer o prazo. “Já tenho planos para o futuro. Quero fazer um curso técnico de química para continuar na função de operador de tratamento de água”, planeja. Por enquanto, volta seis vezes por semana ao local, onde procurava sustento para a vida e, por pouco, não foi cenário da sua morte.

Na ocasião do acidente, a empresa enviou nota afirmando que sempre respeitou as normas de segurança exigidas pela legislação trabalhista. Contudo, conforme Wellington um dos requisitos mínimos de segurança era que os trabalhadores estivessem presos por uma corda sem necessidade dos outros se aproximarem em caso de alguém passar mal. 

Apesar dos perigos, os curtumes não lideram as estatísticas dos acidentes de trabalho em Mato Grosso do Sul, mas ganham projeção no quesito gravidade. De 2013 para cá, foram registrados mais de 260 acidentes em curtumes com 8 mortes em Mato Grosso do Sul. “Se comparado com a construção civil, acidentes em curtumes são poucos. Porém quando acontece, a tragédia pode ser muito maior por causa dos produtos tóxicos utilizados na atividade”, afirma o juiz Ademar de Souza Freitas, do Fórum Trabalhista. 

Em 2012, quatro pessoas morreram e 28 ficaram feridas em acidente de trabalho no frigorífico Marfrig. (Foto: arquivo/ Marlon Ganassin)
Em 2012, quatro pessoas morreram e 28 ficaram feridas em acidente de trabalho no frigorífico Marfrig. (Foto: arquivo/ Marlon Ganassin)

Tragédia e punição - Se em 2012, Bataguassu, a 335 km de Campo Grande, chorou a morte de quatro jovens em acidente de trabalho no frigorífico Marfrig Alimentos. Hoje, recebe em benefícios a multa milionária aplicada à empresa.

Conforme Paulo Roberto Aseredo, procurador do trabalho em Três Lagoas, responsável por Bataguassu, o valor de R$ 5 milhões foi parcelado em cinco vezes e a cidade já recebeu R$ 2 milhões. “A condenação tem caráter pedagógico. Agora, os responsáveis vão pensar duas vezes antes de descumprir a leis trabalhistas”, diz.

Na época, foi comprovado pela Polícia Civil do município que o frigorífico não oferecia treinamento para os funcionários e o engenheiro responsável pelas instalações não estava presente no momento do acidente. Marcos Vinícius da Silva Melo, 19 anos, Waldir Henrique Raimundo, 28 anos, Edimar Felesbino da Silva, 28 anos, e Karl Matheus Luft, 20 anos, morreram após inalar gás tóxico produzido por uma reação química. Além disso, 28 pessoas ficaram feridas. 

Conforme o procurador, foram constatadas várias irregularidades, como falhas na sinalização de rota de fuga, orientação de procedimentos de utilização de produtos químicos, falta de plano de controle de incêndios e Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidente).

Paulo Roberto salienta que depois da sentença não ocorreu acidente similar no local e a empresa sanou a maioria das irregularidades. “O montante referente a multa é fornecido para empresas privadas, que prestam contas com o parecer do procurador, o juiz analisa e homologa”, explica.

Parte do dinheiro foi usada para equipar o Corpo de Bombeiros, PMA (Polícia Militar Ambiental) e reforma do abrigo para idosos. Também foi comprada uma van para a Liga de Combate a Câncer e está em construção um centro de atividades para crianças de baixa renda.

Para o juiz Ademar, o antídoto contra acidentes de trabalho é a prevenção. (Foto: assessoria/TRT)
Para o juiz Ademar, o antídoto contra acidentes de trabalho é a prevenção. (Foto: assessoria/TRT)

A face do perigo - A estatística mostra a faceta arriscada das atividades laborais em Mato Grosso do Sul. Em um ano, foram 48 mortes e 11.402 acidentes de trabalho. Os dados são do Ministério da Previdência Social e relativos a 2013. A relação do ano passado ainda não foi divulgada. O levantamento tem como referência acidente provocado durante o trabalho, o trajeto ou afastamento por alguma doença relacionada ao emprego.

No TRT/MS (Tribunal Regional do Trabalho), a média é de dez novos processos por dia. De janeiro a setembro deste ano, o tribunal recebeu 2.730 novos processos. As cidades com mais processos relacionados a acidentes de trabalho são Campo Grande, Dourados e Três Lagoas.

Contra os acidentes, o antídoto é a prevenção. De acordo com o juiz Ademar, se a empresa não cumprir com as normas de segurança, a irregularidade deve ser denunciada ao MPT (Ministério Público do Trabalho) e sindicato. “Há casos também que a empresa fornece equipamentos de segurança, mas o trabalhador não usa, acha que com ele nunca vai acontecer”, afirma.

Serviço - Clique aqui para acessar o formulário eletrônico para denúncia, disponibilizado pelo MPT.

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