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Arquitetura

Casa guarda histórias de advogada que ganhava galinha no início da profissão

Dona Odette guarda muitas lembranças dos primeiros honorários, inclusive do uso de uma aliança para escapar do assédio nas décadas de 60 e 70.

Thailla Torres | 04/12/2018 07:55
Casa chama atenção pelo cuidado, encanto que já se perdeu na maioria das casas antigas na cidade.(Foto: Paulo Francis)
Casa chama atenção pelo cuidado, encanto que já se perdeu na maioria das casas antigas na cidade.(Foto: Paulo Francis)

Mais uma casa de Campo Grande revela histórias, dessa vez no Centro, onde o cuidado e beleza do azulejo português intacto chamam os olhares de quem caminha na rua. Encanto que já se perdeu na maioria dos bairros antigos, mas sobrevive em uma das ruas mais movimentadas da cidade, graças ao amor de uma advogada aposentada pelo endereço histórico da família.

O imóvel, com mais de 65 anos, está nas mãos de Odette Cardoso Ramalho, de 74, que herdou a casa do pai que comprou o lugar como presente para a mãe. O lugar foi construído, segundo ela, por Marcílio de Oliveira Lima, médico e político que foi vereador e prefeito em Campo Grande nas décadas de 50 e 60.

Portas de madeira com mais de 2 metros e meio de altura e as grades de ferro desenhadas são o que mais chamam atenção para o tempo que passou.

No antigo padrão de energia está depositada a fé da dona da casa. (Foto: Paulo Francis)
No antigo padrão de energia está depositada a fé da dona da casa. (Foto: Paulo Francis)

A mulher, muito simpática, se identifica como advogada e parece acostumada com visitas de quem se interessa pela casa. “Já recebi muitos estudantes de Arquitetura, minha casa é uma das que mais chamam atenção pela conservação”.

Ela compartilha a vontade de preservar cada detalhe para manter viva a história da família. “Mamãe gostou muito dessa casa no fim da vida, ela já estava muito doente quando pediu ao papai que comprasse. Ele comprou e mudamos com os irmãos. Mas mamãe só morou aqui uns quatro meses até falecer. Quando herdei, fiz questão de terminar a reforma e cuidá-la, é a minha paz”.

Portas e janelas são originais, na sala que fica maioria do tempo fechada, o pé direito de quatro metros de altura revela o estilo de construções da época. Com vários ambientes, toda casa é interligada por portas, “coisa de português”, diz Odette. “Era para caso alguém invadisse a casa, você fechava uma porta e saía pela outra. Ninguém ficava sem saída”, explica.

No teto da sala, outra relíquia, um lustre de bronze, objeto de desejo de qualquer colecionador, mas hoje completamente indisponível. “Já tentaram comprar e ofereceram R$ 100 mil. Mas nunca está à venda”, lembra Odette.

Lustre antigo de bronze na primeira varanda, uma lembrança da família. (Foto: Paulo Francis)
Lustre antigo de bronze na primeira varanda, uma lembrança da família. (Foto: Paulo Francis)
A porta de madeira intacta, com mais de 60 anos de história. (Foto: Paulo Francis)
A porta de madeira intacta, com mais de 60 anos de história. (Foto: Paulo Francis)

Na fachada bege, a única modificação foi a inclusão de grades e portas de ferro nos arcos da arquitetura, para manter a segurança. Mas dentro nada mudou. A dona jura que foram só algumas reformas para manter a estrutura. “Papai estava reformando quando faleceu. Por isso, terminei a reforma, mas mantive os detalhes originais”.

Na casa que Odette decidiu que faria Direito, hoje estão relíquias do início da profissão. Advogada exerceu o ofício durante 27 anos até se aposentar. Hoje, passa o dia fazendo pesquisas e ajudando, gratuitamente, acadêmicos que levam a sério o curso.

Objetos guardados são presentes que ganhou de clientes, muitos, que não tinham condições de pagar em dinheiro seus honorários. Inclusive, foi assim que começou quando pegou os primeiros processos na mão. “Os clientes me pagavam com galinhas, pato, porco e eu nem tinha onde cozinhar. Mas também não queria dinheiro, naquele tempo minha única vontade era aprender”.

Para uma mulher formar em Direito naquela época, Odette enfrentou o mundo. “Era um atrevimento uma mulher querer mudar de cidade para se formar, ainda mais em Direito. Mas mamãe dizia que desde os cinco anos eu falava em ser advogada, subia na mesa e fazia discurso. Era uma atrevida”.

Fachada que antigamente era aberta hoje é protegida por grades. (Foto: Paulo Francis)
Fachada que antigamente era aberta hoje é protegida por grades. (Foto: Paulo Francis)
Detalhe da sala de jantar com vitrô original desde a construção do imóvel. (Foto: Paulo Francis)
Detalhe da sala de jantar com vitrô original desde a construção do imóvel. (Foto: Paulo Francis)
Na sala, algumas relíquias da famílias. (Foto: Paulo Francis)
Na sala, algumas relíquias da famílias. (Foto: Paulo Francis)

Depois de formada, o pai que nunca se opôs a profissão da filha, mandou derreter as alianças e presenteou Odette com anel de formatura que ela carrega no dedo anelar até hoje, acompanhado de uma aliança que simboliza o amor e o casamento com a profissão, mas também virou salvação contra o assédio dos homens nos primeiros anos de formada. “Muita gente não respeitava, me livrei de muita coisa com essa aliança”, ri.

Anel de profissão dado pelo pai nunca saiu do dedo, assim como a alianças que simboliza o amor pela profissão. (Foto: Paulo Francis)
Anel de profissão dado pelo pai nunca saiu do dedo, assim como a alianças que simboliza o amor pela profissão. (Foto: Paulo Francis)

O tempo como advogada não lhe permitiu um casamento e nem filhos, acredita. “Dediquei-me muito ao Direito, mas não por obrigação, por amor. O que te fortalece é ser objetivo na vida e foi com o Direito que sempre me fortaleci”, diz.

Hoje, ela lamenta que o amor à profissão não seja o mesmo para novos alunos e desabafa sobre o que observa no dia a dia. “Fracos, os recém-formados saem muito fracos. Eu não teria coragem de colocar uma ação na mão deles, porque a ganância tomou conta e há falta de humanidade. É o que eu sinto”, diz.

Mas ela não desiste, garante. “Ainda guardo todos os meus livros, estou sempre pesquisando, quem vem até mim, eu ensino”.

Na despedida, na porta da casa, um sorriso de quem fica feliz com a visita, mas deixa claro que a casa nunca estará à venda. “Se eu morrer fica para a família, mas antes disso eu vivo aqui até o fim, essa casa é minha alegria, é o que ficou do papai e da mamãe”.

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Azulejo português intacto, uma lembrança que ficou dos primeiros donos da casa. (Foto: Paulo Francis)
Azulejo português intacto, uma lembrança que ficou dos primeiros donos da casa. (Foto: Paulo Francis)
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