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Arquitetura

Fachadas apagadas pelo tempo guardam costumes que ficaram no passado

Ainda é possível ver muros que fazem as vezes de outdoor com propagandas de serviços que representam a transição da era analógica para a digital, mas que hoje caíram em desuso.

Kimberly Teodoro | 13/03/2019 08:36
O muro baixo que faz as vezes de outdoor anuncia serviços de uma era de transição tecnológica que virou raridade (Foto: Paulo Francis)
O muro baixo que faz as vezes de outdoor anuncia serviços de uma era de transição tecnológica que virou raridade (Foto: Paulo Francis)

Por bairros antigos da cidade, fachadas esquecidas exibem resquícios das décadas que se foram e de empresas que um dias sonharam ser grandes. Para quem tem um olhar mais atento, passar por elas desperta uma mistura de nostalgia e curiosidade sobre o estilo de vida e de consumo que já não existe.

Um exemplo é a casinha cor-de-rosa em uma esquina no Jardim Amambaí. Fechada há muitos anos, a grama alta e o lixo deixado por ocupantes ocasionais se acumulam ao redor da construção. O único indício de que já foi habitada são os anúncios na lateral dos muros baixos, onde entre outros serviços, o que mais se destaca é a inscrição “VHS p/ DVD”. O nome “Video Home Sistem” o “VHS”, formato de mídia muito popular entre os anos 1950 e 1990, traz de volta uma época de transição, que para os mais velhos não faz assim tanto tempo assim, mas para os que já nasceram na era do smartphone, é coisa de museu.

Figura que já faz parte do cenário, Noel Isidoro da Silva, de 57 anos, transformou uma caminhonete estacionada em frente à casa cor-de-rosa em estande para as frutas que vende. Só ali naquele ponto, ele se orgulha em dizer que está há mais de 12 anos, mesmo tempo em que a empresa responsável pelos anúncios fechou as portas ou passou a atender em outro lugar. “Depois que me mudei pra cá, funcionou só por mais uns 3 meses. Eu mesmo nunca mandei fazer serviço nenhum aí, não tinha necessidade porque não usava essas coisas, mas via que tinha movimento. Desde que eles foram embora a casa ficou fechada”.

Noel transformou a caminhonete em vitrine para as frutas há 12 anos (Foto: Paulo Francis)
Noel transformou a caminhonete em vitrine para as frutas há 12 anos (Foto: Paulo Francis)

Na vizinhança, a maioria dos moradores antigos se mudou, ou tem receio de atender o interfone sem horário marcado. Poucos são tão receptivos como a dona de casa Marta Barreto Nogueira, de 70 anos, que mora na mesma casa há 27 anos e não só se lembra da empresa de fotografia e vídeo que funcionava na rua, como também ainda guarda grande parte das memórias da família em VHS. Na sala de casa, inclusive um aparelho de videocassete esquecido na estante, bem ao lado do irmão mais novo, que também já caí em desuso, o DVD.

“Ali era um estúdio de fotografia, quando funcionava eles chegaram até a colocar uma estátua de papelão de tamanho real na calçada, como propaganda. Desde que fechou, ninguém mais fez nada com a casa, dizem que está em inventário. Como o mura da frente é baixo, às vezes tem quem veja a casa vazia e entre para fazer o que não deve, mas com o senhor que vende frutas ali, pelo menos durante o dia ele impede a entrada desse pessoal”, conta. Segundo Marta, além dela, apenas mais 3 vizinhos na mesma quadra são antigos na região.

Uma das moradoras mais antigas da rua, Marta ainda guarda as fitas com lembranças de família (Foto: Paulo Francis)
Uma das moradoras mais antigas da rua, Marta ainda guarda as fitas com lembranças de família (Foto: Paulo Francis)
Dividindo a estante com o aparelho de DVD, o antigo videocassete é relíquia de família (Foto: Paulo Francis)
Dividindo a estante com o aparelho de DVD, o antigo videocassete é relíquia de família (Foto: Paulo Francis)

Quando questionada sobre os serviços anunciados, a resposta é quase saudosa. Marta diz nunca ter feito mais que fotos 3x4 para documentos no local, mas para ela a relação com o VHS é afetiva. “Tem filme, lembrança de família, festa de 15 anos das minhas filhas, aniversário do meu filho, o casamento das minhas filhas foi registrado em fita. Ainda temos até o aparelho, mas sabe que já faz tempo que eu não uso? Quando lançaram o DVD, cheguei até a orçar com um rapaz que atende aqui perto, para colocar tudo isso no CD, mas acabou não dando em nada”.

A filha mais velha de Marta se casou há 20 anos, mas a do meio há 15 anos e o filho mais novo, tem a fita mais antiga que guarda as lembranças da festa de aniversário de 2 anos dele, que hoje com 25 anos, pode até ter a idade contada pelo tempo em que o VHS caiu no esquecimento.

O muro que faz as vezes de outdoor ainda guarda propaganda política de 1996 (Foto: Paulo Francis)
O muro que faz as vezes de outdoor ainda guarda propaganda política de 1996 (Foto: Paulo Francis)
O anúncio de recondicionamento de mortes de fuscas e kombis foi apagado pelo tempo, mas José não desiste do trabalho (Foto: Paulo Francis)
O anúncio de recondicionamento de mortes de fuscas e kombis foi apagado pelo tempo, mas José não desiste do trabalho (Foto: Paulo Francis)

Há poucos quilômetros do Amambaí, outro muro que faz as vezes de outdoor chama atenção. Na casa do aposentado José Silva Cavalcante, de 78 anos, no mesmo espaço que anuncia o recondicionamento de motores para Fusca e Kombi, há uma propaganda política para a prefeitura de Campo Grande em 1996.

“Das antigas” e representante do típico “cidadão de bem” brasileiro, José foi dono de uma loja de roupas e sapatos femininos no centro da capital durante muitos anos, e culpa o governo da época pelo fim da era das vacas gordas e os governantes seguintes pela falta de prosperidade. Segundo ele o “plano cruzado”, uma tentativa de tirar o país da crise na década de 1980, o obrigou a fechar as portas. “Quando o Sarney colocou o plano em prática, ele congelou os preços por um ano, quando os preços voltaram a subir, todo mundo achou que podia colocar o que bem entendia e meu aluguel foi de 1,2 mil cruzados para quase 20 mil cruzados. Eu até queria voltar a trabalhar com loja, montar uma para a minha filha, mas na situação atual do país e com a miséria que é a aposentadoria, o juros é muito alto. Depois de 2008, o governo só fez foi quebrar o país”, relata.

Quando foi forçado a fechar as portas, José transformou o fundo de casa em “oficina”, onde passou a ser torneiro mecânico, atividade que, quando aparece trabalho ele faz até hoje. Por volta da década de 1990, Fuscas e Kombis, especialidades dele, eram muito mais fáceis de encontrar por aí e o serviço era requisitado com muito mais frequência. “Cheguei a vender mais de 10 motores em um ano, fora os reparos. Hoje tem ano que passo sem vender nada, quando o movimento está bom, vendo um único motor por ano”, diz.

José já trabalhou com política, mas hoje está desiludido com os rumos do país (Foto: Paulo Francis)
José já trabalhou com política, mas hoje está desiludido com os rumos do país (Foto: Paulo Francis)
Ao lado das inscrições apagadas, faixas novas em folha anunciam o serviço do qual José se recusa a abrir mão (Foto: Paulo Francis)
Ao lado das inscrições apagadas, faixas novas em folha anunciam o serviço do qual José se recusa a abrir mão (Foto: Paulo Francis)

Na mesma época em que abriu o novo negócio, José chegou a se envolver com política, inclusive ainda diz ter a carteirinha de filiado do PMDB, mas hoje anda desiludido. “Trabalhei uma vida inteira tentando ganhar dinheiro honestamente, para ver os outros ficando rico e agora tendo que viver com essa miséria que é o salário do aposentado”, afirma. Ainda assim, a propaganda continua lá, apagada pelo tempo. “Quem deu autorização para isso foi a minha falecida esposa, só porque o japonês dono de um posto que tem por aqui era candidato no mesmo partido e era uma pessoa legal”.

Antigamente, as propagandas políticas tinham menos regras. Segundo José, a esposa ganhou uma lata de tinta para pintar a casa em troca do “aluguel do muro”, mas também havia quem recebesse dinheiro por isso.

Em vários pontos da cidade, fachadas apagadas mostram também termos que quase já não se usa no comércio, como "armarinhos".
Em vários pontos da cidade, fachadas apagadas mostram também termos que quase já não se usa no comércio, como "armarinhos".

“Antes não tinha quem distribuísse os santinhos na rua, como tem hoje. Os candidatos jogavam de avião aquele monte de papel pela cidade. Eu trabalhei dirigindo uma Kombi com som tocando as propagandas, era uma música bonita feita por uma banda que nem era daqui. Eu levava o meu netinho para passear comigo, andávamos a cidade toda tocando aquela fita. Tinha também aqueles showmícios, que além do cara conversando no palanque, vinham bandas de fora tocar. Reunia mais gente quem tivesse a melhor música, em um deles teve até o Michel Teló, pequenininho tocando aquela sanfona”, conta.

Resistente, ele se recusa a se render à pós-modernidade, pelo contrário, depois de levar muito calote com cheques sem fundos, comprou até uma maquininha de cartão de crédito que nunca foi usada desde que chegou, mas que ele ainda tem certeza de que vai usar em breve. “O próximo passo é colocar internet aqui. Em Campo Grande o movimento é fraco, mas tem muita gente no interior que ainda precisa do meu serviço e não acha, aí colocando as coisas no computador, fica mais fácil para negociar com as pessoas, o que eu não quero é parar de trabalhar”.

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