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Arquitetura

Incêndio por velas matou irmã e transformou menino em inventor da família

Com aparelhos eletrônicos encontrados no lixo o menino do 7º ano conseguiu melhorar a vida dos moradores e até um celular

Kimberly Teodoro | 05/07/2019 09:47
Rogério Gonçalves conseguiu levar luz ao acampamento onde vive, aos 13 anos, usando apenas materiais descartados por outras pessoas (Foto: Vanderi Tomé/Região News)
Rogério Gonçalves conseguiu levar luz ao acampamento onde vive, aos 13 anos, usando apenas materiais descartados por outras pessoas (Foto: Vanderi Tomé/Região News)

“Placa Fotovoltaica”, “semicondutor de diodo” e “circuitos” são termos que pegam de surpresa quem não prestou atenção à aula de física. Mas tudo sai da boca de um garoto de 13 anos, então, é de impressionar qualquer um. Rogério Gonçalves mora com a mãe, o padrasto e o irmão mais velho no acampamento Jatobá, criado por famílias do MST (Movimento Sem Terra), em Sidrolândia há 70 km de Campo Grande,. Com poucos recursos, eçe transformou a comunidade ao redor do barraco de madeira e lona em que vive com energia elétrica.

Por lá, Rogério não é apenas uma figura conhecida, como também é bastante requisitado. Na primeira tentativa de contato da reportagem, Valdirene Gonçalves, de 41 anos, mãe do adolescente foi quem atendeu o telefone, explicando logo em seguida que o filho tinha ido até o vizinho arrumar uma lâmpada. Minutos mais tarde, ele explicou que o “conserto” era na verdade uma visita de manutenção da instalação feita por ele, que além da própria casa, também leva luz para outros sete barracos no acampamento.

Encantado pela tecnologia desde criança, todo o conhecimento para as criações que hoje melhoraram a vida na comunidade em que vive vieram da curiosidade do menino que "brinca de inventor" desde os cinco anos.

A preocupação surgiu de uma tragédia que marcou a família antes mesmo do nascimento de Rogério. “A minha mãe perdeu uma filha dela em um incêndio causado por velas. Eu sempre ouvi essa história e quando soube que nós iríamos morar em um acampamento, com casas de madeira onde as pessoas usavam vela e existe o perigo de pegar fogo, pensei também em uma forma segura de ter luz em casa. A instalação que eu fiz tem um sensor de curto, quando a rede fecha um curto, ela desliga”, diz o garoto, extremamente articulado na maneira de falar.

A primeira engenhoca foi uma extensão improvisada, feita com  uma tomada que encontrou no lixão perto de onde cresceu e um cabo de televisão, usando como única ferramenta uma faca de serra. Quando viu que dava certo, não parou mais. "A minha infância eu cresci mexendo com essas coisas. Minha brincadeira era ficar em um canto desmontando o que eu encontrava para ver como funcionava. Gostava de montar carrinhos de picolé, colocar um motorzinho e olhar ele ir correndo pela estrada".

O sistema funciona com placas de energia solar e é seguro para os moradores (Foto: Vanderi Tomé/Região News)
O sistema funciona com placas de energia solar e é seguro para os moradores (Foto: Vanderi Tomé/Região News)

O sistema criado por ele com utiliza placas fotovoltaicas, aquelas de energia solar, bateria de lítio 3.7, “dessas comuns retiradas de celular, desde que não esteja estufada, porque aí é perigoso pegar fogo”, explica Rogério. Um bico lanterna também de 3.7 e diodo, um semicondutor que de acordo com ele impede que a carga de energia retorne para a placa e superaqueça a rede. O que torna possível acender a lâmpada de led que substitui a vela, que para muitos moradores da zona rural ainda é o único meio de afastar a escuridão.

A família é de Nioaque e mora em Sidrolândia há cerca de um ano, Valdirene explica que a mudança foi uma tentativa de oferecer educação ao filho. “Nós morávamos na Conceição, depois de 40 km de Nioaque, lá é zona rural e aqui em ele teria mais condições de continuar estudando”. Orgulhosa, ela conta que Rogério nunca teve quem o ensinasse, todas as criações “são da cabeça dele mesmo” e que sempre foi assim. “Tudo o que ela achar que tem de eletricidade, ele conserta. Ele conhece todas as peças, ele sabe tudo. Ele improvisa bastante também, inventou uma caixa de som que ele usa para trabalhar”.

A preocupação de Rogério era de que a casa onde vive, feita de madeira e lona, pegasse fogo por causa das velas utilizadas durante a noite (Foto: Arquivo pessoal)
A preocupação de Rogério era de que a casa onde vive, feita de madeira e lona, pegasse fogo por causa das velas utilizadas durante a noite (Foto: Arquivo pessoal)

Feita com uma caixa de hortifruti, madeira de guarda-roupa e um som automotivo, um sistema de som também é utilizado por Rogério para trabalhar. Ele percorre a cidade preso à bicicleta fazendo propaganda dos comércios locais na parte da manhã, antes das aulas. Por cada hora, ele ganha R$ 10, dinheiro com que ajuda em casa e tenta reinvestir nas próprias invenções. Em dias de chuva, a rotina é um pouco diferente, o tempo livre é dedicado a fazer manutenção e a fiscalização no sistema elétrico instalado por ele em outros barracos do acampamento onde mora.

O celular de Rogério também é uma adaptação feita por ele com peças “tiradas de um lugar e outro”. O aparelho foi descartado depois de parar de funcionar e chegou às mãos do estudante com as placas do circuito interno molhadas e os conectores que alimentavam a bateria quebrados. “Quando fiz a minha placa de anúncio precisava de um celular, mas não tinha condições de comprar. Então, juntei dinheiro, comprei um ferro de solda e um estanho, peguei dois fios, soldei na bateria e na entrada de USB, soldei em um conector que estava quebrado e ele hoje funciona normalmente”.

Celular improvisado por Rogério (Foto: Aquivo Pessoal)
Celular improvisado por Rogério (Foto: Aquivo Pessoal)
A solda feita para consertar o aparelho ainda é visível na parte de trás (Foto: Arquivo Pessoal)
A solda feita para consertar o aparelho ainda é visível na parte de trás (Foto: Arquivo Pessoal)

O conhecimento necessário veio da curiosidade e de um celular antigo também encontrado no lixo. Rogério conta ter desmontado e montado o aparelho 12 vezes, sempre observando as peças para entender como cada coisa funcionava, o teste final era sempre colocar o telefone na tomada e conseguir ligar sem problemas. “O segredo era montar e desmontar sem perder nenhum um parafuso ou não dava certo”.

As invenções não param por aí, para manter a televisão de casa funcionando, ele explica ter criado uma rede com dois “fotovoltaicos, que juntam chegam a 15 volts,o suficiente para carregar um celular. Sabe essa bateria de lanterna policial? Eu peguei e juntei ela, seis baterias de lanterna, peguei um transformador, liguei em uma televisão de 12v, um receptor de 5 volts em uma dessas placas. Ele mantém a bateria de lítio e estabiliza a televisão. Com um inversor, eu poderia transformar esses 12 volts em 110 volts”, relata como quem passa uma receita de bolo.

Ainda no 7º ano, Rogério ainda nem começou a ter aulas de física, mas nem por isso desanima, as matérias favoritas na escola são ciências, história, matemática e geografia. O que para ele é apenas o começo da caminhada em busca de conhecimento, para o futuro a única certeza é a vontade de entrar na universidade, mesmo não tendo certeza sobre o curso. “Qualquer coisa com engenharia elétrica, mecatrônica ou mecânica, que me ensine como as coisas funcionam”.

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