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Arquitetura

Sandra procura inquilino que não apague do muro o amor da mãe por Che Guevara

Antes de partir, pedido de dona Maria foi para que obra de arte não saísse da porta de casa

Thailla Torres | 26/03/2019 07:35
Há 21 anos, muro guarda o rosto de Che Guevara em bairro de Campo Grande. (Foto: Kísie Ainoã)
Há 21 anos, muro guarda o rosto de Che Guevara em bairro de Campo Grande. (Foto: Kísie Ainoã)

Maria Amália Albernaz partiu há 20 dias. Dentro de casa, em silêncio, ela adormeceu segurando as mãos da filha e de duas amigas, deixando para quem ficou a saudade. Para Sandra Aparecida Ferreira Andrade levantar todos os dias da cama e passar na frente da casa da mãe se resume em olhar para uma das maiores paixões de Maria: o rosto de Che Guevara no muro,  uma lembrança que ela teme chegar ao fim.

O abraço apertado e o choro incansável da filha transbordam muita tristeza, mas também um amor que hoje Sandra não tem com quem dividir. “Ela era o meu amor, minha vida e minha dedicação. Não existia pessoa mais incrível no mundo do que a mamãe”.

As lembranças sobre Maria, carinhosamente chamada de “Mary”, estão em Sandra, na vizinhança e no muro laranja com rosto de Che, pintado há 21 anos. “Ela mandou pintar logo que chegou aqui no bairro. Foi pintado e retocado pela mesma pessoa durante todo esse tempo. Um dos seus últimos pedidos, em carta, é que o muro nunca fosse acabado”, conta.

Jardim segue intacto graças aos cuidados de antigos moradores. (Foto: Kísie Ainoã)
Jardim segue intacto graças aos cuidados de antigos moradores. (Foto: Kísie Ainoã)
Sandra procura inquilino que preserve a pintura de sua mãe. (Foto: Kísie Ainoã)
Sandra procura inquilino que preserve a pintura de sua mãe. (Foto: Kísie Ainoã)

Por isso, Sandra agora procura um inquilino que carregue sensibilidade suficiente para que a obra de arte perdure. “Apagar a pintura é apagar a história da mamãe. Uma mulher a frente do seu tempo, revolucionária, que não media esforços para lutar pelas pessoas”.

Maria nasceu em Campo Grande em 1939 e era uma militante desde à adolescência. “Meu avô era dentista, tinha uma moto na década de 50 e 60. Minha mãe não se intimidava com as imposições da época e saia com meu avô em cima da moto durante os atendimentos. Gostava de estudar e desejava muito ensinar durante a vida”.

Da forma como Sandra conta, a sala de sua casa exibe a cena. Maria adorava os livros e fazia questão de todos expostos à mesa. Na parede da sala, ficavam os quadros com rosto de Che Guevara e a boina do revolucionário que de vez em quando colocava. “Ela era apaixonada por Che Guevara e estudou sobre ele durante anos. Leu todos os livros possíveis sobre suas histórias. Quando alguém falava mal dele, ela sentava e tinha argumentos suficientes para esclarecer tudo”.

A resistência de Maria chegou a incomodar até político graúdo em Campo Grande, em época de eleição. “Alguns achavam ruim a pintura no muro, mas ela não apagava de jeito nenhum”.

Quadros de Che Guevara foram parar na sala da casa de Sandra. (Foto: Kísie Ainoã)
Quadros de Che Guevara foram parar na sala da casa de Sandra. (Foto: Kísie Ainoã)
Mary leu inúmeros livros sobre o revolucionário Che. (Foto: Kísie Ainoã)
Mary leu inúmeros livros sobre o revolucionário Che. (Foto: Kísie Ainoã)
Boina de Che nunca saiu da mesa.
Boina de Che nunca saiu da mesa.

Maria também foi presidente de bairro na região do Bonança e era conhecida de muitos, conta a filha. “Ela lutava muito pelos moradores, ia de ônibus até a prefeitura exigir os direitos da população. Mamãe não se calava perante a oposição”.

Nas palavras de Sandra, também foi uma mãe e amiga que não mediu esforços para a educação dos filhos. “Ela nos alfabetizou cedo, sempre nos incentivou à leitura e ao conhecimento”, diz.

Incentivo que levou a filha a se tornar professora, escritora e poeta. Com diversos artigos e livros publicados, Sandra descobriu, após a morte, que dona Maria era sua fã incondicional. “Ela guardou na caixinha tudo o que saiu sobre mim, cada entrevista, cada nota, cada poema no jornal impresso. Mas nunca me contou”.

Dias após o falecimento, o filho de Sandra entregou uma das caixas da avó à mãe. “Quando eu abri meu coração não aguentou, fiquei com vontade de rever tudo isso com ela ao meu lado. Foi muito doloroso”.

Sandra diz sentir muita saudade da mãe. (Foto: Kísie Ainoã)
Sandra diz sentir muita saudade da mãe. (Foto: Kísie Ainoã)

Nos últimos anos, a saúde de Maria deu sinais de fraqueza e uma queda a deixou sem andar. Sandra era quem visitava a mãe todos os dias, pelo menos, quatro vezes ao dia. “No fim de tarde, sentávamos na varanda para que eu pudesse contar as novidades. Eu também tinha umas piadas sem graça, mas ela sempre ria e isso nos deixava muito feliz”.

Quarta-feira de Cinzas, dia 6 de março, Maria não amanheceu bem. O telefone de Sandra tocou cedo, era a cuidadora informando o estado da mãe que pouco falava. A filha estava prestes a ir ao caixa eletrônico sacar dinheiro para pagar as contas que a mãe havia pedido no dia anterior. “Larguei tudo e fui correndo para a casa dela”, lembra.

Ao chegar na residência, Sandra encontrou a mãe em silêncio. “Ela já estava trocada e íamos leva-la ao médico quando decidiu deitar. Segurando as minhas mãos ela ficou quietinha e, naquele momento, eu pedi que ela desse um sinal e virasse na cama. Em seguida virou e não respondeu mais”.

Os minutos seguintes foram com a chegada do Corpo de Bombeiros, mas Sandra ainda tinha esperanças no peito. “Eu achei que eles pudessem reanimá-la, mas ela já havia partido”.

No coração de Sandra o que ficou se resume em saudade e falta. “Muita falta, não há um dia que eu não pense nela, que eu não lembre as coisas que ela fez por mim e que fazíamos juntas”.

O sofrimento tem dia que está menor, mas ao passar na frente da casa da mãe, o medo. “Não quero que apaguem a pintura dela e nem desfaçam o jardim. Ele me deixou essa casa e eu prometi preservá-la. Só vou alugar para quem se comprometer em manter tudo. Adoraria que fosse um centro cultural”.

Para amenizar a saudade, Sandra mudou até a decoração da casa para ter de volta o carinho da mãe. “Tirei todos os meus móveis e os meus objetos para colocar o sofá preferido e os quadros do Che. É um jeitinho de sentir ela perto de mim”.

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Título de "Mais Bela Idosa" que Maria recebeu na universidade. (Foto: Kísie Ainoã)
Título de "Mais Bela Idosa" que Maria recebeu na universidade. (Foto: Kísie Ainoã)
Carta deixada pela mãe antes de partir. (Foto: Kísie Ainoã)
Carta deixada pela mãe antes de partir. (Foto: Kísie Ainoã)
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