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Artes

Fechar consultório e viver da sua arte coloriu como aquarela a vida de dentista

Paula Maciulevicius | 19/09/2016 06:36
Mineira voltou a Campo Grande para visitar família, e na casa do irmão, desenha em lousa. (Foto: Fernando Antunes)
Mineira voltou a Campo Grande para visitar família, e na casa do irmão, desenha em lousa. (Foto: Fernando Antunes)

Dentista por graduação, durante 18 anos Hyali trabalhou com ortodontia em Campo Grande. Mineira, chegou à Capital depois de se formar, em 1993 e há seis anos, fechou as portas do consultório para abrir as do ateliê e viver da sua arte no seu estado de origem, em uma cidade pequenininha, de 4 mil habitantes. 

Gonçalves é sua residência há nove meses e nos últimos quatro, palco para o Ateliê Espaço Criativo. "Moro perto do ateliê, ele tem um ponto bacana, fica bem no centrinho da cidade e é um lugar que às vezes até atrapalha a produção pelo tanto de gente amiga que senta para conversar, tomar cafezinho e fumar um cigarrinho de palha", descreve Hyali Barros, hoje com 44 anos.

Tudo isso acontece ao som do violeiro vizinho, que torna ainda mais atrativo o ponto de encontro. "Às vezes eu até penso, a vida vai passar e eu não vou ver o tempo passar", brinca.

A conversa com Hayli que virou este texto fala sobre a coragem de mudar, depois de se analisar e se autodescobrir. E mostra que para ser feliz, não é preciso fazer o mesmo a vida toda.

As Artes já faziam parte da Hyali menina, ainda aos 8 anos, quando as aulas de pintura começaram, mas ficaram em segundo plano quando ela teve de escolher uma profissão.

"Minha irmã já exercia a Odontologia e por influência dela, pela empolgação e dedicação que ela tinha, eu fiz Odonto", revela. Contrariando até mesmo os testes vocacionais feitos aos 17 anos, Hyali inverteu as respostas. Todo o caminho artístico foi para o fim da fila, dando lugar à área da saúde, que aparecia em última opção. 

"Mas você fica muito preocupado com o desempenho social, quando eu falo que é uma idade ingrata de você escolher uma profissão é porque eu acho que deveria existir um teto, uma idade mínima para você poder fazer uma escolha", acredita. 

Para saber o que se quer é preciso se analisar, se descobrir. A resposta deveria, pelo menos em tese, ser fruto do silêncio interno, da busca interior, de saber suas qualidades e tendências. "Mas você imagina numa idade que está tudo muito efervescente, a questão de você se inserir na sociedade, neste período você olha ao entorno e quer estar incluído, precisa e para ser bem aceito, você tem que fazer aquilo que as pessoas acham que é conveniente", explica.

Sete anos depois de formada, Hyali encontrou na Filosofia todo questionamento teórico que precisava ser feito a si mesma. "Aquele jargão, conhece-te a ti mesmo e conhecerá a Deus e ao universo...", filosofa. E o que ela fez com essa descoberta? Decidiu colori-la.

"Tive mesmo um estalo: eu penso que a vida da gente é feita em ciclos e quando você percebe que tomou um caminho que não está te satisfazendo, começa a criar angústias, aí vem as doenças vocacionais, que são subjulgadas. Acham que é frescura, que depressão cura com remédio e assim você está cuidando só das consequências", avalia. 

E quando as pequenas angústias diárias aumentam, é preciso despertar. Foi isso que ocorreu à dentista. "Existem períodos de busca, depois a construção de alicerces. No momento em que você tem a necessidade de construir casa e família, você está realmente focada em bens materiais e não dá tempo de pensar em muita coisa. Você está num processo de agitação interior e do meio também", explica. 

Daí sai o que sustenta e adia a tomada de decisões. A arte - que para Hyali foi a pintura - fica relegada a ser um hobby e quem a pratica, fica refém da espera pela felicidade. "Você vai adiando essa pequena satisfação para o final de semana, para uma vez por mês e no fim, vai ficar angustiado, sempre esperando por algo bacana e é naquilo que você se realiza e o grande erro está nisso: você não faz o que deveria fazer bem feito, porque já está angustiado e não conquista o que você gostaria de fazer, porque não tem tempo".

"Eu tenho 44 anos agora, antes fazer um curso era realmente fazer para a vida inteira e hoje não. Você pode modificar no meio do caminho...", prega Hyali. (Foto: Fernando Antunes)
"Eu tenho 44 anos agora, antes fazer um curso era realmente fazer para a vida inteira e hoje não. Você pode modificar no meio do caminho...", prega Hyali. (Foto: Fernando Antunes)

O que eu quero estar fazendo daqui 10 anos? "Foi justamente essa pergunta que me fiz. Fiquei numa fase transitória por volta de dois anos, já tinha as atividades artísticas, porque fazia vários cursos de Artes, mas você determina que arte não dá dinheiro, vou fazê-la como hobby e as pessoas acreditam nisso", cutuca. Quando a verdade universal cai por terra, os olhos enxergam que ao seu redor, tem artistas que vivem assim. 

"Eu tenho 44 anos agora, antes fazer um curso era realmente fazer para a vida inteira e hoje não. Você pode modificar no meio do caminho, trabalhar algo que você modifica, criar uma empresa, existem formas de você pensar em algo que vai poder fazer por determinados períodos. Você não precisa ser médico ou advogado a vida inteira. Eu tenho pena de pessoas que acham que a vida é única para a vida inteira e se engessa e fica assim. Isso é muito injusto com o ser humano".

Somos estações do ano - Hyali compara a vida humana às estações e recorre a elas para descrever o caminho pelo qual resolveu trilhar, que traduz mais ou menos assim: depois de verões externos, festas e buscas, o outono é como a fase adulta.

"Onde você vai usufruir o que conquistou e para mim, é a época mais bonita do ano. Você está colhendo o que plantou, mas o que você plantou? Se você passou a vida inteira percorrendo por algo que não era aquilo? Feliz é daquele que realmente acha um fluxo e segue mais tranquilo". 

As pessoas que conseguem isso é, para a artista, as que souberam se ouvir, se pesquisar e no estalo, tiveram coragem. Não que a Odontologia, para ela, tenha sido um erro. Se fez necessária para tecer o conforto e maturidade, mas encerrou sua função quando Hyali descobriu qual era seu papel na engrenagem da vida.

"Quando você entende qual é a sua função que faz a máquina girar... O universo depende de você, desse funcionamento e quando você não se encaixa, aquilo não flui. Você perde a sua função dentro da sua evolução e se descobrir é o que vai fazendo as pequenas alegrias. A felicidade é o montante destas pequenas alegrias".

Menina da roça, trabalho da série de Hyali em madeira. (Foto: Arquivo Pessoal)
Menina da roça, trabalho da série de Hyali em madeira. (Foto: Arquivo Pessoal)
Retrato em aquarela. Técnica preferida da artista. (Foto: Arquivo Pessoal)
Retrato em aquarela. Técnica preferida da artista. (Foto: Arquivo Pessoal)
As cores do ateliê. (Foto: Arquivo Pessoal)
As cores do ateliê. (Foto: Arquivo Pessoal)

Ao decidir viver da arte, Hyali não se encontrou em Campo Grande, uma capital que mantém fechado o ciclo de artistas. E o que ela queria, era maior que isso. Era ser livre, sem ter a preocupação se iriam gostar ou não do seu trabalho. "Queria algo encantador, onde eu pudesse morar, trabalhar e vender meu trabalho...". Daqui ela tomou rumo para a cidade natal, São Lourenço, Sul de Minas, onde aprendeu que a gente cria as necessidades de acordo com as expectativas.

"Se você quer uma vida saudável e simples, você cria necessidades menores com satisfações maiores e suas expectativas, não sendo tão grandiosas, você não se frustra". Aprendida a lição, o ateliê se mudou para Paraty, no Rio de Janeiro, onde pela primeira vez, as obras de Hyali chegaram ao mercado estrangeiro sem atravessadores e sim por clientes que passavam, se encantavam e levavam um pedaço do Brasil para longe. 

"E lá que eu aprendi a aquarela, uma das mais desafiadoras técnicas, é como aprender o mais difícil instrumento musical e depois todos ficam mais fáceis", compara. Quando o aprendizado acabou ali também, a bagagem artística escolheu outro destino para a artista, a serra.

"Chega um momento que você quer um pouco mais de repouso. Meu outono estava no ápice, quero preparar um lugar onde eu vá viver a minha velhice tranquila e conheci Gonçalves, uma cidade onde tudo se anuncia pelo sino da igreja", descreve. 

A rotina na Serra da Mantiqueira trouxe o silêncio externo e interno e mostrou que o local já era abrigo de muitos artistas. O carro-chefe do ateliê são as aquarelas e um trabalho mais regional, a pintura em madeira. "Sigo temas bem rurais mesmo. Trabalho com acrílico, óleo sobre a madeira e aquarela para cenários da região mesmo.

Se eu me encontrei? Posso dizer que sim. Você se faz uma pergunta e vai buscando pequenas respostas. Lá, eu juntei todas as respostas e fez sentido. Eu me faço sentido. É como se eu me encontrasse em plena atividade no lugar certo, com as pessoas certas.

Não é deixar a vida levar o lema de Hyali. Pelo contrário, é se lançar sabendo que o acaso não existe. "O que existe é uma construção saudável daquilo que você realmente cria. Para eu levar a minha vida, tenho que ter controle sobre ela. O se lançar não é deixar a vida te levar, é dar confiança aquilo que você já terminou", ensina. 

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