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Comportamento

Depois de "sair do armário" 2 vezes, a constatação: "Foi uma carta de alforria"

Me questionei muitas vezes como um ser humano, cristão e de fé: Por que eu?

Elverson Cardozo | 17/03/2015 06:12
"Aos 14 anos, sufocada, decidi me abrir com meus pais. Não foi nada fácil ver a tristeza nos olhos do meu pai, mas, para mim, foi uma alívio, uma carta de alforria" (Foto: Arquivo Pessoal)
"Aos 14 anos, sufocada, decidi me abrir com meus pais. Não foi nada fácil ver a tristeza nos olhos do meu pai, mas, para mim, foi uma alívio, uma carta de alforria" (Foto: Arquivo Pessoal)

A terceira matéria da série “Saindo do Armário” conta a história da maquiadora Thalyta Marttins, de 24 anos. Criada em uma família tradicional, católica, ela ficou no armário por anos. Saiu depois de muitos conflitos, primeiro como gay e, depois, como transexual. O relato que você vai ler abaixo é dela.

“Não podia lutar contra a natureza, então, me aceitei gay”

Sair do armário uma vez é difícil, mas duas é muito mais. Nasci no interior do Estado de Minas Gerais, na cidade de Coroaci, como Nestor Martins Generoso. Desde muito nova, apresentei trejeitos femininos, mas, àquela época, não imaginava o tamanho da tormenta que iria enfrentar para chegar aos dias atuais.

Criada em um meio extremamente conservador e católico, cresci sem entender o que acontecia a minha volta. Por volta dos 7, 8 anos, comecei a sentir que era diferente dos outros meninos. Nas brincadeiras, conversas e até mesmo nos encontros da família, eu sempre estava nas rodinhas de meninas e das mulheres. Eu não me interessava pelo universo masculino. Aquilo não era meu.

Na doutrina católica, somos ensinados que nascemos com destino traçado e que nossa vida já foi escrita por Deus. Me vi em conflito porque não podia sentir o cheiro da pele masculina que já ficava arrepiado. Seria certo isso?

Me questionei muitas vezes como ser humano, como um ser cristão e de fé. Muitas vezes, ajoelhada nas minhas conversas com Deus, perguntei: Por que eu? Dentre tantos meninos e tantas pessoas no mundo, por que eu? Justo eu que orava, que era bom estudante, exemplo para meus 6 irmãos. Por que sentia aquilo?

O desejo me fazia perder o controle e, quando percebia, já estava praticando, vivendo, experimentando e, depois, me culpando. Durante muito tempo vivi com isso dentro de mim. Travava lutas diárias para não sentir desejo e para ser um menino “normal”, que jogava bola, gostava de meninas, motos, carros, etc. Lutei, mas não consegui.

Aos 14 anos, sufocada, decidi me abrir com meus pais. Foi minha primeira saída do armário. Como acontece com fulano, ciclano e beltrano, não foi nada fácil ver a tristeza nos olhos do meu pai. Mas, para mim, foi uma alívio, uma carta de alforria compartilhar aquilo com os meus.

Depois disso, veio a fase de aceitação pessoal, de aceitar que não foi minha escolha e de era uma condição. Não podia lutar contra a natureza, então, me aceitei gay.

“Me identificava como mulher”

Mas, mesmo assim, algo ainda me perturbava. Enquanto todos os meninos, héteros ou gays, se olhavam no espelho e imaginava-se, no futuro, como homens lindos, fortes, musculosos e másculos, eu me imaginava com cabelos compridos, corpo torneado e lindos seios. Mais uma vez, a angustia, a culpa e o desespero de não saber como agir me atormentavam.

Depois de "sair do armário" 2 vezes, a constatação: "Foi uma carta de alforria"

Como nunca tive muito contato com o meio LGBT (até eu me abrir com meus
pais), continuei um tempo, um tempão na verdade, com aquilo dentro de mim. Aí conheci a sigla T, de Travestis e Transexuais.

Lembro-me da primeira travesti que conheci. Giulia era linda, simpática... Meus olhos brilharam. Fiquei maravilhada com ela. Eu tinha, finalmente, encontrado o meu eu. Era aquilo que queria ser. Me identificava como mulher.

Precisei conhecer Giulia para me dar conta disso, mas, na verdade, sempre me comportei como uma menina quando, escondida, usava as roupas das minhas irmãs, as joias, sapatos, batons e perfumes da minha mãe.

Mesmo ciente da minha condição, e pesquisando cada vez mais sobre ser travesti/transexual, mantive isso em segredo por muito tempo. E fiz isso porque tinha uma fase inacabada da minha vida, a faculdade, que era o sonho maior do meu pai.

Ele queria que eu me formasse doutor. Infelizmente, não me formei doutor, mas hoje tenho um diploma na parede dele. Um não. Dois, de Administração e Design de Moda. Missão cumprida. A partir do momento em que entreguei o canudo nas mãos dele, decidi que era minha vez de realizar o que queria e viver do meu jeito. Me assumir gay já foi difícil. Como iria me assumir transexual?

Seria difícil. Eu sabia, mas queria isso e nada e nem ninguém me faria desistir. Ergui a cabeça e, com o pouco de conhecimento que tinha, foi dando vida e imagem à mulher que vivia em mim. Foi assim que, pela segunda vez, saí do armário.

Como da primeira vez, esta não foi uma etapa fácil. Amigos e familiares que realmente me amavam e se importavam comigo, me apoiaram e estão do meu lado até hoje. Outras pessoas, porém, se afastaram. Por preconceito, perdi tios, tias, primas e primos. Perdi uma boa parcela da minha família paterna.

Não posso dizer que isso não me afeta ou não me fere, porque o conceito de amor e família que eu tive como ensinamento desde criança se foi buraco abaixo, mas é vida que segue. Tive que seguir a minha, assim como eles seguiram a deles. Eu cá e eles lá.

Nunca tive outra conversa com meu pai. Não foi necessário. Hoje, graças a Deus, vivo como Thalyta Marttins. Tenho casa emprego, amigos, pais, irmãs e irmãos que me amam e me apoiam.

Envie seu relato - Se identificou com a história da Thalyta? Tem alguma para contar? Compartilhe com a gente! Mande um e-mail para ladob@news.com.br

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