ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no Twitter Campo Grande News no Instagram
ABRIL, SEXTA  26    CAMPO GRANDE 24º

Comportamento

Diagnóstico de autismo demorou, mas mãe não desistiu de realizar sonhos

Mesmo reaprendendo a tocar a vida, Ana conseguiu investir na carreira profissional e chegou ao doutorado

Kimberly Teodoro | 27/05/2019 08:17
Autismo mudou a rotina de família, mas não levou a esperança de um futuro brilhante (Foto: Henrique Karaminami)
Autismo mudou a rotina de família, mas não levou a esperança de um futuro brilhante (Foto: Henrique Karaminami)

Psicóloga, Ana* já estava habituada a lidar com a diferença dos alunos da escola especial em que trabalhava no interior de Rondônia, mas até os primeiros sinais dados aos três anos de idade pelo filho, Felipe*, não imaginava sentir na pele os desafios do autismo. O diagnóstico veio para mudar a rotina da família e levou quase dez anos para ser conclusivo, mas não destruiu sonhos do filho ou impediu que Ana realizasse os próprios, como investir na carreira profissional e chegar ao doutorado.

Hoje, em Campo Grande, na sexta série do ensino fundamental, Felipe é à primeira vista “introvertido”, que gosta de videogames, desenhos animados de ação e livros infanto-juvenis como qualquer outra criança. Por isso a mãe preserva a identidade do menino, para proteger o filho de qualquer discriminação.

Leva algum tempo para conquistar a confiança do garoto, mas a medida que a conversa progride, se mostra inteligente e doce. Descrição oposta ao estereótipo relacionado ao Transtorno do Espectro Autista, que afeta, principalmente, a interação social, a comunicação verbal e não-verbal e o comportamento. “Muito estímulo, dependendo do quadro e da época, desorganiza. Nós recebemos muitas informações, mas filtramos tudo isso. Para eles é como se isso entrasse na cabeça ao mesmo tempo e existe a dificuldade em separar uma coisa da outra”, explica Ana.

Ana é casada e tem outro filho já na universidade. Além do lado “mãe de família”, aos 48 anos também encara o doutorado em educação, com jornada quase dupla na tentativa de conciliar os compromissos acadêmicos à vida pessoal.

Com tempo limitado, a rotina é pesada. Pela manhã, enquanto Felipe está na escola, ela investe nas anotações e leituras. Depois do almoço, acompanha as atividades do filho, provas e tarefas em jornada que é basicamente “fazer pela segunda vez o Ensino Fundamental”. Tudo isso sem contar as sessões de fonoaudiologia e terapias alternativas, que ocupam algumas tardes.

Quando questionada sobre o segredo, ela brinca não saber. Provavelmente, a ajuda do marido e do filho mais velho, que passaram a entender melhor o diagnóstico de Felipe e dividir os afazeres de casa e responsabilidades com o caçula da família.

“Não é por aí, esse profissional está equivocado”, “Não confie nesse diagnóstico”, foram “conselhos” constantes de quem estava a volta (Foto: Henrique Kawaminami)
“Não é por aí, esse profissional está equivocado”, “Não confie nesse diagnóstico”, foram “conselhos” constantes de quem estava a volta (Foto: Henrique Kawaminami)

"Os marcos do desenvolvimento motor aconteceram, ele iniciou a fala, mas não progrediu. Com os outros comportamentos, eu fiquei ressabiada. Já trabalhava em escola especial, não com quadros de autismo. Surdez, deficiência intelectual, múltipla, visual. Não necessariamente com autismo. Entrar em contato com o autismo, começar a trabalhar com o autismo foi novo. Foi instigante. Então eu não percebi os sinais que foram dados", conta Ana sobre a dificuldade em encontrar um diagnóstico. A primeira suspeita da família foi a surdez, que explicaria o atraso na fala e falta de resposta nas tentativas de chamar a atenção do menino. Diversos exames foram feitos até que a possibilidade de perda auditiva fosse descartada.

Foi quando Ana procurou ajuda de uma fonoaudióloga, durante o acompanhamento uma das primeiras questões em torno do diagnóstico foi levantada. A profissional levantou a dúvida entre transtornos específicos da linguagem e o autismo. “Foi quando procurei um neurologista, acredito que o problema tenha sido a falta de empatia na hora desse diagnóstico. Entre entrar, fazer a avaliação e sair com o relatório, foram 40 minutos em que ele deu uma série de outros comportamentos, problemas e distúrbios. Eu saí do consultório sem chão, sem um resultado conclusivo e nenhum tipo de encaminhamento e com uma receita de medicamento controlado.”

Sem saber que direção tomar depois, foram alguns dias até “colocar a cabeça no lugar” e mergulhar de cabeça no assunto. Apesar da prescrição médica, Ana não viu a necessidade de administrar os remédios prescritos para comportamentos que o filho não tinha com base em um diagnóstico genérico.

“Eu sabia que tinha relação com o autismo, o que eu não sabia era definir a profundidade, o comprometimento e as outras questões que fazem parte desse conjunto”. No trajeto, foram muitos “Poderia ser” e nenhum interesse do neurologista da época em “verificar se esse pode ser é de ou não é”.

A finalização desse processo, com exames mais específicos e orientação adequada só aconteceu no ano passado, quando Felipe já tinha 10 anos. Até então, além da falta de empatia médica, Ana também ouviu muitos “você está vendo coisas onde não tem”, “Não é por aí, esse profissional está equivocado”, “Não confie nesse diagnóstico”, foram “conselhos” constantes de quem estava a volta, completamente desinformados e sem condições de lidar com o tema.

Foi buscando informação que Ana conseguiu vencer o processo de negação e buscar a ajuda para auxiliar a formação do filho (Foto: Henrique Kawaminami)
Foi buscando informação que Ana conseguiu vencer o processo de negação e buscar a ajuda para auxiliar a formação do filho (Foto: Henrique Kawaminami)

Ana relata percepções como o falta de empatia e o despreparo profissional baseada na própria experiência. Levando em conta que o pediatra é profissional que mais entra em contato com a criança, ela acredita que é também aquele que mais deveria estar apto a “perceber essas questões e proceder os encaminhamentos, mesmo que não sejam eles os responsáveis pelo diagnóstico. No entanto, o que percebemos a saga em busca de entender o que o seu filho tem de diferente e ninguém conseguir orientar essa mãe em busca de uma resposta”.

Ao mesmo tempo em que a incerteza ainda batia à porta, os comportamentos de Felipe foram ganhando alterações de acordo com a idade. As primeiras vezes na escola, em que ele se recusava a entrar na sala de aula, idas ao supermercado, momentos em que costumava ficar mais agitado, onde choro e gritos eram comuns. Enquanto cada fase e situação era diferente e tinha a própria dinâmica, aos olhos de quem estava do lado de fora, Felipe parecia uma criança mimada que nunca tinha sido ensinada a se comportar em sociedade.

Insatisfeita com as respostas dadas por médicos anteriores, com o relatório geral em mãos, Ana procurou novamente ajuda de um neurologista. A necessidade era saber exatamente a condição do filho, para conseguir auxiliar a formação de Felipe. Foram meses entre exames laboratoriais, geneticistas, cardiologistas, ressonância magnética, investigação com a família, escola, professores e coordenadores, além do encaminhamento para uma neuropsicóloga disposta a analisar mais profundamente o caso, a conclusão finalmente chegou.

“A inteligência dele é média, não é nem aquele tem as ilhota de saber que antigamente era chamado de Asperger, mas também não tem comprometimento intelectual. Você tem condições de investir na formação acadêmica e cognitiva. Ele vai precisar de acompanhamento psicológico para o desenvolvimento das habilidades sociais, ele entende as coisas literalmente, não compreende adequadamente as metáforas. Ele vai precisar de suporte e acompanhamento, mas o desenvolvimento é possível.”

A desinformação ainda é muito grande e é, para Ana, o que mais atrapalha as mães na tentativa de trabalhar na formação do filho. Ela relata que as pessoas olham, julgam e não auxiliam. Muitas vezes, além de não auxiliar, emitir aquele olhar reprovador e ainda interferem no processo que essa mãe está estabelecendo e acabam atrapalhando.

Com o tempo as pessoas mais próximas passaram a entender melhor “o que é isso”, a reação inicial e as justificativas para os comportamentos autistas foram e ainda estão sob ajuste. Tudo com a ajuda do fluxo de informação, já que saber sobre o problema é o primeiro passo para aprender a lidar com ele. Quando se engravida ou se adota um filho, esperamos que essa criança corresponda ao que idealizamos e um diagnóstico de autismo faz ruir esse castelo de areia. Tudo o que vem a mente é um futuro difícil em uma sociedade que embora tenha evoluído muito, tenha dado muito espaço para as questões das deficiências, das pessoas com necessidades especiais, ainda é muito desinformada e preconceituosa. Ainda existe muito preconceito”
.
“O grande receio é que enquanto ele é pequeno, podemos colocar embaixo do braço e proteger do mundo, mas ele não vai ficar pequeno para sempre. Cresce e precisa aprender a se virar, é nossa responsabilidade como pais é ensinar, preparar os filhos para a independência. Quando passamos a compreender melhor, vemos que o quadro não é tão funesto quanto se pinta”.

*Ana e Felipe são nomes fictícios para resguardar a identidade dos personagens.

Curta o Lado B no Facebook e no Instagram.

Nos siga no Google Notícias