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Comportamento

Em espetáculo de dança, Chico mostra no palco versão da amiga que foi embora

Diretor e coreógrafo, Chico Neller transformou em movimentos as lembranças de Míriam, levada pelo câncer em 2016

Gustavo Maia | 31/12/2018 09:03
Obra apresentou visão do diretor sobre amiga que partiu. (Foto: Divulgação/ Helton Perez)
Obra apresentou visão do diretor sobre amiga que partiu. (Foto: Divulgação/ Helton Perez)

A bailarina Miriam Gimenes partiu no dia 17 de março de 2016, mas deixou no amigo Chico Neller, coreógrafo e diretor, a certeza de que tudo nessa vida é cíclico. Também reforçou as possibilidade de reinvenções a cada dia. Para retribuir, surgiu o espetáculo Pra Você, dedicado às suas memórias particulares da parceira de dança.

Numa casa de três meninas e dez homens, onde nove eram jogadores de futebol, Chico Neller foi para o balé, numa época em que Campo Grande só tinha quatro escolas onde se ensinava dança: o Ballet Isadora Duncan, o Ballet Arte, o conservatório Sans Souci e a academia Dance Center Versatile, onde ele começou a dançar e conheceu Miriam.

Miriam em um dos espetáculos do Ginga.
Miriam em um dos espetáculos do Ginga.

Miriam foi a primeira menina que Chico convidou para integrar a nova companhia de dança da cidade, criada por eles: o Ginga. Ela, ainda no último ano do ensino médio, com uns 17 anos de idade, aceitou a empreitada. Foi assim que juntos eles foram expulsos da academia Dance Center Versatile e começaram a dançar em todos os lugares que podiam: inauguração de boates, na tradicional Festa do Peixe e até em inauguração de obras, como no pontilhão próximo ao Shopping Norte Sul Plaza.

Chico lembra que naquela época a moda não era a dança e sim os desfiles. “Era o auge do desfile. A gente emprestava roupa e ia para o interior desfilar e ainda dançar nos intervalos. E as meninas, a própria Miriam, desfilavam, dançavam, elas faziam de tudo. Era assim que a gente conseguia dinheiro”, relembra.

Cena do espetáculo Pra Você, criado por Chico Neller e apresentado este ano no Festival Cerrado Abierto. (Foto: Divulgação/ Helton Perez)
Cena do espetáculo Pra Você, criado por Chico Neller e apresentado este ano no Festival Cerrado Abierto. (Foto: Divulgação/ Helton Perez)

Em 1993, a amiga foi embora para São Paulo e deixou de dançar no Ginga, mas continuou colaborando. "Formada em Educação Física, ela pesquisava sobre motricidade, já falava de psicologia na dança, que era uma coisa que estava ainda tão longe, tão distante pra nossa época”, comenta Chico, lembrando que naquela época ela “já tinha um olhar diferente sobre as coisas". "Queria saber o porquê das coisas. Mesmo morando em São Paulo, ela continuou o tempo todo em contato com a gente aqui. Toda vez que vinha para cá, queria ver os ensaios, participar do processo”, conta.

No início dos anos 2000, Miriam retorna para Campo Grande e abre um spa urbano chamado Ofurô. E apesar da demanda no spa, ela participava trabalhando na parte de projetos e editais do grupo de dança. “Os temas do Ginga sempre foram muito relacionados ao feminino, e foi através dela que eu entendi que isso era uma questão minha com a minha mãe, por isso o feminino sempre estava presente nas minhas obras. Não era uma coisa que eu falava, mas tava lá no meu subconsciente”, admite.

E foi sobre o feminino que Miriam voltou à ativa em 2011, sob a direção de Chico, com o espetáculo Maria, Madalena. “A Maria, sistemática, que não foge das regras, que construía; e a Madalena que destruía tudo isso”, explica ele, lembrando que no processo de elaboração, eles passaram mais de um ano bem próximos, juntos quase todos os dias.

Por isso, quando a notícia da doença veio, Chico foi surpreendido. Ele conta que Miriam sabia guardar bem um segredo. “Mesmo a gente estando tão próximo, eu não sabia que ela estava doente. Quando eu soube que ela estava com câncer, e alguém me disse que ela não queria receber visitas, eu respeitei”.

Ele lembra da época em que a saúde de Miriam foi se deteriorando e o esforço dos amigos para não se abaterem diante da adversidade. “Quando ela estava em coma induzido a gente foi para o Parque das Nações Indígenas fazer danças circulares, que era uma coisa que ela sempre fazia. Ela acreditava muito no poder da dança”, conta ele.

Um dia, durante uma viagem, o telefonema de um amigo foi um adeus. "Ele disse: Olha, a Miriam faleceu’. Eu fiquei sem saber o que fazer. Eu tinha acabado de passar por um histórico de perdas na família - perdi meu pai minha mãe e minha irmã - foi tudo muito rápido. Então quando eu recebi a notícia da morte da Miriam, eu ainda estava meio anestesiado. Demorei para assimilar”, desabafa.

Chico conta que sempre teve dificuldade para lidar com a morte, e com a de Miriam teria sido ainda pior: ele não conseguiu, sequer, ir ao velório da amiga. “Eu não vivi esse momento da morte da Miriam. Eu sempre tive um problema com a morte. Além dos meus pais eu nunca vi uma pessoa morta, eu prefiro guardar a imagem das pessoas vivas, felizes. E como a Miriam era a pessoa que sempre me provocava, me tirava da zona de conforto, eu demorei para aceitar que a Miriam tinha partido, que eu estava sem ela”.

Chico Neller conta suas memórias da amiga Miriam Gimenes, que serviram de inspiração para espetáculo de dança. (Foto: Gustavo Maia)
Chico Neller conta suas memórias da amiga Miriam Gimenes, que serviram de inspiração para espetáculo de dança. (Foto: Gustavo Maia)

“O principal legado que ela deixa para mim, antes de qualquer coisa, é que ela era uma grande estudiosa. Todo dia ela se reinventava de alguma forma”. E foi da dor da perda que ele se reinventou e tirou forças para dar a Miriam a melhor homenagem que ele poderia: criar um espetáculo de dança sobre ela. “Quando ela faleceu ela tava cursando psicologia, já depois dos 40 anos, mas esse olhar dela, que tudo ela achava bonito, essa sensibilidade, ela sempre teve. Então a Miriam que ficou para mim foi essa: uma questionadora, que não aceitava as coisas assim tão gratuitamente”, conclui.

Chico conta que o espetáculo foi criado por pura intuição, e colocou em cena uma Miriam que pouca gente conheceu. “As pessoas viam uma Miriam que eu não via. Porque eu te vejo a partir do que eu sou. E eu tinha uma relação de irmão com ela, ela não tinha nenhum pudor para me dizer o que ela pensava. A nossa amizade não era formal. E era dessa Miriam que eu queria falar, da Miriam que eu conhecia”, explica Chico.

O som no palco foi outro item da caixa de lembranças da amizade dos dois. “Então eu pedi a trilha do último espetáculo dela, Maria, Madalena. Nossa como essa trilha é Mística! É a cara da Miriam! Porque ela sempre foi bruxa para mim. Miriam era extremamente bruxa. Ela trabalhava o tempo todo com a energia das pessoas”, descreve ele.

Sobre o nome do espetáculo - Pra Você - Chico explica que além de ser uma clara dedicatória, é derivado do último espetáculo que eles dançaram juntos no Ginga, que se chamava Por Você.

Chico finaliza reafirmando a viva lembrança que ele tem de Miriam, uma mulher sensível e que era capaz de ser quem ela quisesse. “Essa questão do misticismo, que pra mim era muito marcante nela, está presente no espetáculo o tempo todo, pelo meu olhar enquanto artista, esse exemplo da borboleta, da transformação o tempo todo. A gente morre e renasce a cada segundo, tudo é muito cíclico. E a Miriam era tudo isso, meio pássaro, meio bruxa, meio homem, meio bicho. Para mim ela era isso: o tempo todo em transformação”, conclui.

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Confira a galeria de imagens:

  • Festa de amigo secreto da Ginga. (Foto: Arquivo Pessoal)
  • Primeiro espetáculo de dança contemporânea do Ginga, em 1989. (Foto: Arquivo Pessoal)
  • Mostra sul-mato-grossense de dança, no Clube Libanês, em 1989. (Foto: Arquivo Pessoal)
  • Primeiro trabalho da Ginga Cia de Dança, em 1986. (Foto: Arquivo Pessoal)
  • Miriam, em apresentação da Ginga Companhia de Dança. (Foto: Arquivo Pessoal)
  • Miriam, a primeira da esquerda para a direita, em apresentação no Rádio Clube Cidade em 1987. (Foto: Arquivo Pessoal)
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