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Comportamento

Filha de comunista, Hilda teve a infância marcada por perseguições e medo

José Rodrigues dos Santos foi um dos maiores sindicalistas do país, mas sofreu na pele as consequências da luta pelos direitos do trabalhador.

Kimberly Teodoro | 31/03/2019 08:00
José Rodrigues dos Santos foi um dos maiores líderes sindicais do país e passou os últimos anos de vida em MS (Foto: Arquivo Pessoal)
José Rodrigues dos Santos foi um dos maiores líderes sindicais do país e passou os últimos anos de vida em MS (Foto: Arquivo Pessoal)

Poderia ser um apenas mais um salão de beleza em Campo Grande, com a fachada vintage em uma rua tranquila da Mata do Jacinto, pouco movimentado pela manhã, onde a maioria dos clientes é morador do bairro. Olhando de fora, quem entra para mais um corte de cabelo nem imagina que o local é onde Hilda Rodrigues dos Santos, de 57 anos, reconstruiu a vida e finalmente criou raízes depois da infância nômade, marcada pela incerteza do dia seguinte. Filha de comunista, cresceu em meio a perseguição dos militares e o medo de nunca mais ver o pai, um dos maiores sindicalistas rurais do país.

Com um sorriso saudoso no rosto e um livro de memórias, publicado originalmente na Alemanha, em mãos, ela recebe a equipe de reportagem e narrar o histórico de lutas trabalhistas do homem conhecido por “Zé”. Com direito a dar nome a escola, ter um busto em praça pública e até museu em Maringá, a lista de homenagens a quem sobreviveu a ditadura é longa, tanto que é difícil imaginar que foi Mato Grosso do Sul, que o fundador do Partido Comunista do Rio de Janeiro escolheu para passar os últimos anos de vida, e finalmente criar raízes.

José passou a vida envolvido em lutas sindicais pelo direito do trabalhador (Foto: Arquivo Pessoal)
José passou a vida envolvido em lutas sindicais pelo direito do trabalhador (Foto: Arquivo Pessoal)

Nascido em Cabeceira do Mocambo, município de Coqueiro no interior da Bahia, “Zé” sempre foi um andarilho por esse “Brasilzão de Deus”. Sem ter certeza do próprio nome ou data de nascimento, saiu de casa com aproximadamente 8 anos, foi direto ao cartório mais próximo, decidido a se chamar José, lembrava-se do sobrenome Santos, mas achou muito pouco, por isso declarou ao escrivão que chamava-se “José Rodrigues dos Santos” e fez o próprio registro.

Vindos Carapicuíba, São Paulo, Hilda ainda se lembra com detalhes da noite que os trouxe até aqui. “Todo o lugar em que moramos, não podia ter luz, a luz precisava estar desligada para que ninguém visse que uma família morava ali. Só tinha água e tínhamos que ficar trancados em casa o dia todo”. Entre os episódios mais marcantes, está o aniversário de 10 anos do irmão mais novo, em que José não estava em casa, mas mandou um bolo para que a data não passasse em branco.

“Naquela noite, estávamos escondidos em uma casinha de madeira cercada pelo mato, sem luz e sem poder fazer barulho para que os vizinhos não nos denunciassem. Cantamos parabéns aos sussuros e batendo palmas devagarzinho, só encostando uma mão na outra em silenciosamente. Não deu nem tempo de cortar o bolo, um companheiro chegou correndo avisando da vinda da polícia, chovia muito, então nos enrolamos em cobertores e fugimos pelo mato e pela lama, debaixo d’água, no escuro e deixamos tudo para trás”.

De lá, a família ainda ficou alguns dias na periferia de São Paulo até conseguirem as passagens de trem para Campo Grande. Aqui foram abrigados pelos colegas de partido de José, indo morar em uma casa na Rua Pernambuco, há quatro quadras da Santa Casa. Ali permaneceram confinados, com a mesma orientação de manter as luzes apagadas e não serem vistos pelos vizinhos até que o local fosse considerado seguro o suficiente, pouco tempo depois José veio ao encontro dos filhos.

Hilda ainda se lembra da infância marcada pela perseguição e pelo medo (Foto: Marina Pacheco)
Hilda ainda se lembra da infância marcada pela perseguição e pelo medo (Foto: Marina Pacheco)

Em seu livro de memórias, José se declara mineiro, lugar que marcou o início da própria caminhada que levou quase uma vida toda “procurando, fugindo, trabalhando, pensando e querendo mudar este mundo”. Sendo a única coisa que sabia fazer da vida, José foi trabalhar em fazenda, fazendo de tudo um pouco. Segunda Hilda, foi quando o pai começou a ter entendimento das diferenças entre patrão e trabalhador, enquanto o primeiro se refestelava em luxo e conforto, com o tudo do bom e do melhor na mesa, o segundo passava fome em casinhas de chão batido há poucos metros da sede.

Ainda jovem, mas decidido a fazer alguma coisa, começou a reunir-se com outros empregados nas fazendas em segredo e no meio do mato para discutir as condições de trabalho. Já o envolvimento com movimentos sindicais veio anos depois, quando se mudou para o Paraná, um dos principais centros de articulação sindical do país, tornando-se uma liderança natural para os trabalhadores rurais, com a autoridade de quem já sentiu na pele as dificuldades da classe.

Conhecido pelas “encrencas” que arranjava com os donos nas fazendas em que trabalhou, José não parava muito tempo em um mesmo lugar. Na década de 1960, foi inclusive candidato a vereador em Maringá e participou de negociações com o governo federal em prol do reconhecimento dos sindicalistas rurais. Em sua biografia, nomes como o do presidente João Goulart, Luís Rosa,Bonifácio Martins, Prestes, Pedro Pomar,Mário Alves, Elisa Branca, Marighella, entre outros se fazem presente na história de José.

Em 1964, José estava em São Paulo, onde fazia parte da direção do partido comunista brasileiro, em suas memórias, afirma que ao contrário do que todos achavam, “sabia que não era um momento passageiro, por causa da tamanha violência” com que o golpe aconteceu. No dia 10 abril, o mesmo da manifestação de estudantes da Cinelândia, ele descreve os fatos em detalhes da volta para casa, depois de deixar o sindicato com a ordem “desaparecer”, assim como as outras lideranças do partido: “Nesse dia, estava chuviscando. Era um entardecer bem escuro, meio embaçado. Depois de muito tempo de espera, peguei um táxi que estava passando: ‘qual é o rumo?’ Fui para a Marechal Hermes, onde morava, na Rua Conde do Valporto, 52, perto da estrada de ferro. Subi até o primeiro andar. Encontrei os oito filhos, e falei: ‘É uma revolução.

Em mãos, o livro é a única cópia que restou para a família das memórias escritas de José (Foto: Marina Pacheco)
Em mãos, o livro é a única cópia que restou para a família das memórias escritas de José (Foto: Marina Pacheco)

Naquela noite, ele, a mulher e os 8 filhos queimaram documentos e livros que pudessem comprometer a família, mas já era tarde. O nome de José já estava entre a lista de procurados pela polícia militar, foi aí que a vida de andanças da família se transformou em fuga.

Dessa época, as lembranças que Hilda tem do pai se misturam, ele costumava passar muito tempo longe de casa e as únicas notícias chegavam pelos colegas de partido, que também levavam dinheiro e providenciaram a mudança da família sempre que necessário. Era comum precisar deixar tudo para trás e fugir sem rumo, cada vez que um “companheiro” entrava pela porta anunciando a chegada dos militares. Era uma questão de minutos entre a retirada da família e a invasão da casa pela polícia. “Quando eu via as outras crianças brincando na rua, frequentando sempre a mesma escola e fazendo amigos, eu achava estranho. Para mim, normal é o estilo de vida que levávamos, em que precisávamos estar prontos para partir ao primeiro sinal de perigo”, conta.

Ao longo da vida, foram 11 filhos, resultado de 4 casamentos que nem sempre deram certo. Ainda assim, fazia questão de manter todas as crianças perto de si, levando-as para onde quer que precisasse ir. Foi assim que a família acabou chegando ao Sul do Mato Grosso, vinda de Carapicuíba. Os dias que antecederam a chegada da família foram tensos, José havia acabado de ser condenado há dois anos de prisão pela Autoridade Militar de Curitiba, em julgamento em que não esteve presente.

“Em mato Grosso, o período foi muito difícil para minha família. A casa continuava sendo ponto de apoio, chegavam os companheiros e pediam abrigo. Assim, também eu sabia que era hora de fugir, porque a polícia logo também chegaria. Fugia pelos fundos, pulando de casa em casa. Às vezes, ficava oito meses, um ano sem dar notícias”, escreve.

A prisão aconteceu em 1976, aqui em Campo Grande na Rua 26 de Agosto. Em seu relato, José fala pouco desses tempos. “Eles me levaram para a prisão do Ahu, em Curitiba,e fiquei incomunicável por dez dias, sem poder ver nem mesmo os advogados. Passei por vários interrogatórios, que iam das dez horas da noite até às duas, três horas da madrugada. Os agentes faziam revezamento. Eu nunca cheguei a ser torturado, mas vários companheiros foram. Eu cuidava das feridas deles”.

Hilda e uma das irmãs foram visitar o pai na cadeia duas vezes, pouco antes da primeira visita, conta ter chorado a noite anterior inteira, sem poder dormir imaginando em que condições encontraria José. O coração só se acalmou depois de ver que, ao menos fisicamente ele estava bem, procurando tranquilizar os filhos, não fez reclamações. O partido moveu a família para São Paulo e continuou ajudando a família durante todo o tempo que José passou na cadeia.

Vendo a grande quantidade de trabalhadores rurais em condições subumanas no sul de Mato Grosso, foi para cá que José resolveu voltar depois de ser libertado pelos militares. Aqui retomou a atividade sindical e chegou até a ser candidato a deputado estadual. Não ganhou as eleições, mas também nunca desistiu da luta.

O livro de memórias foi escrito por um historiador alemão, que veio até o Brasil em busca dos “ossos” da ditadura e dias com José ouvindo e registrando tudo. Hilda diz que a história é bem maior e que a versão original contém outros nomes de sindicalistas brasileiros, mas a única cópia se perdeu em um incêndio muitos anos atrás, só sobrou o relato de José, pois havia sido traduzido por professores da Universidade Estadual de Maringá, que publicou 500 cópias em 1999.

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