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Comportamento

No Facebook, campanha apoia transsexual que já desistiu da vida 9 vezes

Paula Maciulevicius | 16/05/2014 06:55
Transsexual e com histórico de quase uma dezena de tentativas de suicídio, Daniel nasceu com outro nome, mas nunca viveu conforme o registro. (Fotos: Marcelo Victor)
Transsexual e com histórico de quase uma dezena de tentativas de suicídio, Daniel nasceu com outro nome, mas nunca viveu conforme o registro. (Fotos: Marcelo Victor)

Daniel Machado, 28 anos. Profissão: cozinheiro, organizador de eventos e estudante. Ia começar a trabalhar num emprego fixo onde, enfim, seria bem vindo e visto como tenta há anos: homem. Nos primeiros dias de maio, ele protagonizou postagens no Facebook. Eram fotos direcionadas ao perfil do jovem com a frase #somostodosdiferentes e #forçaDaniel. Apoio de amigos, em parte, transsexuais, que viraram a família que ele nunca teve, depois de um grave acidente que o deixou com 39 pinos e 26 peças de platinas no rosto. O que poderia ser o fim, parece um novo começo.

Transsexual e com histórico de quase uma dezena de tentativas de suicídio, Daniel nasceu com outro nome, mas nunca viveu conforme o registro de nascimento feminino. A documentação ainda é toda com o nome “Danyelle”. Ele não fala em voz alta por abominar a figura que lhe foi imposta a ser. Quando dava, dizia a quem visse a identidade que era descendente de italianos e por isso o nome terminava em “e”.

“Eu pensava ser hermafrodita, que tinha nascido com dois sexos”, diz. O jovem cresceu ouvindo que tudo isso ia passar. “Não, não, isso é coisa de criança. Isso é coisa de adolescência, quando crescer passa”, relembra o que mais ouvia. E na fase adulta? A desculpa ia ser qual? Até achar a resposta ele tentou desistir da vida nove vezes.

Na entrevista, ele apresenta uma fotografia. “Você acha que é uma menina?”. A foto mostra Daniel quando tinha 3 ou 4 anos, logo depois de cortar o cabelo, sozinho, para ficar igual ao do irmão. “Colocavam roupa feminina em mim, eu ia lá e colocava do meu irmão. A família do meu pai é bem instruída e dizia para a minha genitora que tinha alguma coisa errada”.

Em toda conversa ele não se refere à genitora como “mãe”. No máximo fala “a mulher que se diz minha mãe”. Ela não o admite como filho e não o chama pelo nome masculino.

Aos 16 anos assumiu de vez ser Daniel. Aí começou a guerra pelo direito de ser chamado assim.
Aos 16 anos assumiu de vez ser Daniel. Aí começou a guerra pelo direito de ser chamado assim.

O rosto, como se vê na foto, já está bem melhor. De bicicleta, Daniel sofreu um acidente no cruzamento da avenida Afonso Pena com a rua Pedro Celestino. Ele corria das vozes que ouvia na cabeça, de que deveria por fim a tudo aquilo. No instante da batida com um carro, não sabe dizer se provocou por querer ou foi realmente um acidente. “Foram nove tentativas (suicídio). Eu nunca pensei que ia chegar a viver até os 28 anos e me amando, como eu sou, transsexual”.

Desde criança ele se sentia como menino e gritava isso para a família. No Natal de 1989, ansioso para abrir os presentes, viu o irmão ganhar carrinho e bola e pensava que chegaria sua vez. “Ganhei uma bolsinha jeans e arquinhos. Eu gritei, disse sou menino e vou brincar de carrinho”.

Aos 16 anos assumiu de vez ser Daniel. Aí começava a guerra pelo direito de ser chamado pelo nome masculino e ser tratado como tal. Por conta disso, largou os estudos. Era difícil erguer a mão quando a chamada trazia o nome que não era ele. Na mesma época criou o apelido “daniboy”, chegou a usar drogas até tentar frequentar uma igreja. “Diziam que Deus fez o homem e a mulher e que eu era uma aberração”.

No espelho, o problema com o peso era nítido. Daniel chegou a ver a balança marcar 160 quilos. Sem documentos que comprovassem quem ele era e sem qualquer aceitação, trabalhou por remunerações mínimas. “Você fica excluído sendo trans, obeso e pobre e como vai sobreviver? Eu ia onde não pedia documento, o que interessava era se você sabia fazer o serviço ou não. Eu não matei, não roubei ninguém, mas eu me matava procurando meu espaço, minha dignidade na sociedade como Daniel”.

Saber que era transsexual, ele sabia por laudos médicos desde fevereiro de 2012. Mas não sabia o que era ser, o que poderia ser. Foi por uma reportagem sobre o primeiro transsexual do Brasil, João Nery, que Daniel entendeu quem era. “Aí comecei a pesquisar, queria tomar hormônio”, conta.

Nos últimos seis meses, a convivência com a mãe tinha se tornado mais estável. Volta e meia ela dizia que iria procurar ajuda para entender o que era a transsexualidade. Mas o resultado de exames em mãos e a luta diária para ser chamado de Daniel levaram a situação ao ápice. “Um tapa na cara e uma frase 'você está morto e enterrado'. Meu mundo acabou, deu vontade de morrer aquela hora”.

Daniel não parecia, nem de longe, uma menina. Na imagem maior, ele tinha entre 3 e 4 anos e havia recém cortado o cabelo como o do irmão.
Daniel não parecia, nem de longe, uma menina. Na imagem maior, ele tinha entre 3 e 4 anos e havia recém cortado o cabelo como o do irmão.

Foi nesta situação que ele saiu de casa na terça-feira do dia 29 de abril. De bicicleta, ouvindo vozes e o conflito dele consigo mesmo. “Eu escutava você é um derrotado, um transsexual, um gordo, um pobre. Quando cheguei no viaduto da Ceará, veio a voz que se eu me jogasse dali, morreria na hora”. Ele ignorou e continuou a pedalar, sem rumo, sem caminho, sem querer chegar a lugar algum.

No Centro da cidade, na esquina com a Pedro Celestino, reparou no desnível entre a ciclovia e a faixa de rolamento. “Quando eu vi, pensei que ia ter que rampar. Eu estava correndo e não consegui. Foi onde eu bati e o carro me pegou”.

O que o salvou de fraturas ainda mais graves, por ironia, foi o binder. Uma cinta que comprime os indesejados seios.

Ao abrir os olhos em uma série de vezes, se perguntou se estava morto. “Não, você está hospital, me diziam. Mas para mim, parecia que eu estava dormindo”. A família foi para a Santa Casa e mais uma vez impôs a condição para que ele aceitasse o tratamento pelo nome de registro. “Eu quero ser tratado como Daniel, se não for assim, eu prefiro morrer”.

Foi preciso ação do Conselho Estadual da Diversidade, da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/MS e do Conselho de Usuários do SUS para que o direito do nome social valesse.

Em casa desde o último dia 8, ele espera a recuperação e a chance de voltar à vida. A vida como Daniel.  Ele aguarda a abertura de um ambulatório trans, bandeira erguida pela ATMS, para dar tratamento especializado aos transsexuais e resolver de vez as questões físicas que já foram resolvidas na cabeça.

“Ninguém está sentindo o que eu estou sentindo. Ninguém está com 39 pinos e 26 platinas. Ninguém sente o cheiro de comida e não pode comer. Quero ser tratado como homem transsexual. Não tem aquela música, é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã? Você tem que amar não pelo status, pela cor, pela identidade de gênero, pela opção sexual, mas amar acima de tudo”. Se isso não for um grito desesperado por socorro para a sociedade, não tem outra definição.

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