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Comportamento

Por trás da esquizofrenia, João é Deus enquanto José só quer sair com uma mulher

Uma mistura de fatos reais com delírio e alucinações, assim é uma entrevista dentro do Hospital Nosso Lar

Paula Maciulevicius | 17/01/2017 07:55
João não é João. José não é José. Os nomes foram trocados pelo Lado B. Os dois são internos do Nosso Lar, com esquizofrenia. (Foto: Alcides Neto)
João não é João. José não é José. Os nomes foram trocados pelo Lado B. Os dois são internos do Nosso Lar, com esquizofrenia. (Foto: Alcides Neto)
Especializada em Saúde Mental, Tânia é terapeuta ocupacional do Nosso Lar e há 20 anos cruza corredores de um lado para outro. (Foto: Alcides Neto)
Especializada em Saúde Mental, Tânia é terapeuta ocupacional do Nosso Lar e há 20 anos cruza corredores de um lado para outro. (Foto: Alcides Neto)

Uma mistura de fatos reais com delírio e alucinações. Por trás da esquizofrenia, João se diz Deus, enquanto José externa no desenho a oportunidade que nunca teve, de sair com uma menina, qualquer menina. Pela primeira vez no Hospital Nosso Lar, o ponto de encontro da conversa é entre desenhos e pinturas no ateliê onde internos passam as sensações para o papel quando faltam palavras.

João não é João. José não é José. Mas pela situação psiquiátrica dos dois pacientes, o Lado B não pode identificá-los. Eles não respondem por si e tem momentos em que perdem a consciência até disso. Por outro lado, a narrativa é convincente, de tão rica em detalhes embasados na realidade.

"A esquizofrenia se caracteriza pela desorientação do pensamento. São os sintomas: confusão do pensamento, alucinação e delírio, perda da vontade de fazer coisas e perda da afetividade", descreve a terapeuta ocupacional Tânia de Lázari Sanches Pinheiro. Para mim, é um dos piores transtornos mentais", completa. Tânia é especializada em saúde mental e há 20 anos trabalha no Nosso Lar.

No ateliê e por todo hospital, paredes exibem obras de arte, talentos revelados na terapia desde o final da década de 90. A intenção nunca foi a de ensinar e sim fazer com que pacientes se beneficiem através da pintura. "Eles vão pintando e isso vai tirando as coisas deles. A gente acredita que assim extravasa o que tem por dentro e não consegue falar", explica Tânia. Nos últimos quatro anos é que a atividade ganhou espaço físico, um dos prédios do anexo do hospital. 

João, 45 anos, esquizofrênico e Deus. (Foto: Alcides Neto)
João, 45 anos, esquizofrênico e Deus. (Foto: Alcides Neto)

João, 45 anos e um nome assinado quatro vezes

"Esses são os meus nomes. Este do ambulatório eletro, este foi o que assinaram primeiro. Godyear General Motors e Anjo Gabriel, que sou eu. 

Esse desenho significa Casa da Liberdade. É uma casa com árvore com frutas e uma terrinha para plantação. Plantar alface, alguma coisa e uma casa para morar sem grade e uma janela sem grade. Por que? Porque eu me sinto preso aqui dentro, me sinto preso e eu não fiz nada que denegrisse a minha imagem. Nunca roubei uma moedinha de ninguém. 

Se eu tomo remédio? Para osso. Segundo o rapaz disse, eu tenho mais de 18, de 39 anos de osso...

Terapeuta: - "Não João, o que ela quer saber é o que você sente quando desenha", interrompe Tânia.

João: - "Mas ela perguntou pra mim... Liberdade. Eu Sou Godyear, aqui está meu documento na minha cabeça do CMO. Esse corpo meu foi levantado no CMO, porque a Nair do ambulatório não queria dar meu corpo que foi trazido pelo Exército Americano. Ela segurou meu corpo e prendeu minha vela do anjo Gabriel na máquina".

A fala é firme, não há pausa maior que a vírgula entre uma frase e outra e na entonação, a certeza de se descrever como um deus. Godyear: 'God vem de Deus e Y do Exército Americano e "ar" porque eu fazia tudo a ar. Não era para ter petróleo, querosene, nada disso. Até hoje eles voam com o ar Godyear. Os Estados Unidos da América crêem em mim".

Entre o delírio e a verdade, João responde que frequenta o Nosso Lar desde 1990, uma sequência de internações constantes e antes que a próxima pergunta chegue, ele age como se soubesse e antecipa. "Eu não tenho nenhuma loucura. O neurocirurgião da Santa Casa olhou meu olho assim com aquela lanterninha e não viu nenhum defeito mental ou qualquer coisa assim. Então não existe doença", argumenta.

De volta ao desenho em mãos, feito à lápis de cor, João diz que a pintura não reflete seu sonho. "Onde eu gostaria de morar? Eu gostaria era de morar numa mansão, mas aqui é uma casinha simplória, com arvoredo, que você sai para trabalhar, chega e tem em casa descanso e proteção. Olha, segundo reza a história, diz que eu era pintor mesmo, que era muito rico quando pintava. Criei meus filhos na Moreninha 3, no Estrela do Sul, no Silvia Regina, em Campo Grande inteira e aqui no ambulatório eu cuido também". 

A conversa, quando não interrompida pela terapeuta que traz João à realidade das perguntas, revela uma narrativa que consegue se desvencilhar da linearidade para outro extremo. No entanto, quando é a vez de José falar, João respeita, mas só pede para Tânia frisar o recado. 

"Tia, tia, fala que o dinheiro que entra é revertido para o hospital. Tem que falar", pede o paciente para a terapeuta. Tânia afirma que sim, que já vai explicar. "50% é para eles e 50% fica para o ateliê, para a compra de material, de tela, de tintas".

José desenha uma flor para a menina que ele nunca saiu. (Foto: Alcides Neto)
José desenha uma flor para a menina que ele nunca saiu. (Foto: Alcides Neto)

José, 33 anos. Longe da crise, está na fase mais perigosa do transtorno

"Eu tô com 5 mes aqui. Vim pra cá, porque queimei a minha casa. Por que? Não sei. Eles trocaram meu remédio lá e eu fiquei louco", conta. As palavras não trazem um convencimento tão grande, mas são o que de fato aconteceu. Talvez por vergonha, a voz não saia tão firme como quando são delírios que eles insistem em dizer como verdade. A confirmação vem da terapeuta. José está lá a mando da Justiça, por ter incendiado a própria casa.

"Esse desenho de flor representa muita coisa na minha vida. Representa uma menina. Que menina é essa? Qualquer uma, é que assim eu nunca saí com uma mulher. Então pode ser qualquer uma. Nunca tive oportunidade, não sei por que", traduz. Em mãos, José tem uma sulfite e o desenho feito com os dedos, de tinta guache. 

A inspiração de José é construída. Ele não chega e sente o que quer desenhar no ateliê. "Eu já venho pensando". O diagnóstico é de conhecimento dele, assim como o tempo de internação. "Esquizofrenia. Não, não é a primeira vez que estou aqui. É desde 2004". 

Nisso, João interrompe para dizer que a doença não existe. "Que eu saiba, pela psique mesmo, esquizofrenia não existe".

José retoma, descartando a hipótese levantada pelo amigo, para dizer o que quer. "Sabe por que eu fico nervoso? Não consigo nenhum trabalho, quero trabalhar de servente, eu era pedreiro". 

Com cores frias, José desenha sabendo porque está ali e do diagnóstico recebido desde os anos 2000. (Foto: Alcides Neto)
Com cores frias, José desenha sabendo porque está ali e do diagnóstico recebido desde os anos 2000. (Foto: Alcides Neto)

Mesmo medicado, a terapeuta explica que esquizofrênicos não conseguem seguir uma rotina de trabalho. "Eles não conseguem ter expectativa, plano e sequência. Acorda, vão trabalhar mas não dão a continuidade que a gente tem. E não é porque não tenham capacidade de fazer aquilo, é que não conseguem levar adiante".

"Você vê a confusão?", pergunta Tânia. "O José tem consciência de que tem alguma coisa, porque quando estão em crise, ele falam que não tem nada. Hoje, este momento de consciência é o mais perigoso da doença, onde é muito mais fácil dele se matar", aponta. 

A conversa termina. João e José seguem para o almoço e agradecem mais de uma vez a oportunidade de falarem, ainda que seja de suas fantasias. 

"Eles criam uma situação em cima de um fato real e o que faz com que eles não tomem a medicação, é porque não se sentem doentes", detalha Tânia. 

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