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Comportamento

Professora trans não desiste de ensinar, apesar dos tabus que nem escola derruba

Ângela Kempfer | 15/10/2015 10:43
Foto clichê, como tantos outros conceitos que teimam em continuar vivos na escola. (Foto> Fernando Antunes)
Foto clichê, como tantos outros conceitos que teimam em continuar vivos na escola. (Foto> Fernando Antunes)

Hoje o Voz da Experiência é especial. No Dia dos Professores, a história é de uma pessoa que, por mais difícil que seja a situação, não desiste da sala de aula. Pamela, como é chamada pelos amigos, atende por outro nome na escola onde dá aulas de Artes. É homem para os alunos, apesar de ser professora na alma.

Transexual, ela ainda não pode escancarar a verdade para quem ela mais respeita no ofício de ensinar. Mas não desiste. Apesar da pressão, quer cumprir o que buscava ao pegar o diploma universitário: levar sensibilidade aos alunos, mesmo em uma rotina que todos têm dificuldade até de falar a palavra pênis.

A vida de uma professora trans na Rede Municipal de Campo Grande mostra o quando o ambiente escolar ainda rejeita as diferenças, realidade que ela mesma conta agora.

Pamela, como gosta de ser chamada, não mostra o rosto porque na sala de aula se apresenta como homem,
Pamela, como gosta de ser chamada, não mostra o rosto porque na sala de aula se apresenta como homem,

Quando me formei no curso de licenciatura em Artes Visuais recebi a missão de meus professores e professoras da universidade de levar sensibilidade para a sala de aula. De fazer crianças, jovens e adultos estudantes a enxergar o mundo de outras formas, para se expressarem, aprenderem a ler imagens, entender o nosso passado e como as sociedades guiavam sua linha de pensamento.

Estava disposta a esse desafio e cheia de ideias para que esses objetivos se cumprissem. Demorei um pouco para adentrar as salas de aula, pois fui me aventurar em outra cidade por um tempo. Cerca de pouco mais de um ano depois de formada peguei minhas primeiras aulas em uma escola pequena aqui de Campo Grande, apenas cobrindo licenças médicas de professores que estavam afastados por atestados médicos. Por aí foram quatro ou cinco escolas, de perfis e desafios distintos, mas em todos sempre uma problemática base: a presença de uma pessoa educadora aparentemente sem gênero.

Eu sou uma pessoa transgênero, ou seja, de alguma forma eu caminho entre o meu sexo biológico (masculino) para a minha identidade de gênero (feminino). Eu costumo falar que sou transexual, mas ainda não comecei nenhum acompanhamento psicológico e não tenho ainda nenhum laudo sobre isso, mas o que importa é que, nunca me identifiquei com coisas, vestimentas, hobbies, desenhos animados ou gostos que os outros meninos costumavam gostar.

Pra mim isso nunca foi um problema, pois sempre acreditei que isso era natural, afinal, dentro de mim é natural e o problema é que não soa natural para alguns grupos de pessoas que compõe a nossa sociedade e, com isso, precisamos lidar com o preconceito, a discriminação.

Com o passar do tempo, fui entendendo que, para conseguir ser na sociedade o que eu sentia dentro de mim, teria que fazer algumas escolhas e uma dessas escolhas foi esperar o momento certo – diga-se, estabilidade financeira – para fazer essa transição de vez. No momento ainda não gozo facilidade, mas ao mesmo tempo, como todo ser humano, tenho minha válvula de escape. Meus amigos próximos sabem da minha condição, além de alguns poucos familiares.

Além disso, tenho um trabalho consolidado com o meu nome social, mas a minha profissão, pelo menos aqui em Campo Grande, ainda está longe de abraçar a minha causa, comprar a minha briga e a de outras pessoas que passam pela mesma situação.

Não vou inventar histórias de que fui discriminada por ser trans na Rede Municipal de Educação de Campo Grande, até porque eles nem sabem, mas um preconceito velado acontece o tempo todo.

Em apenas uma escola tive oportunidade de conversar sobre o assunto com uma das minhas coordenadoras. Ela leu uma matéria que fiz para uma revista que circula entre escolas onde eu falava de inclusão de travestis e transexuais nas escolas. Lá tinha uma foto minha e a coordenadora resolveu me puxar pra conversar. Expliquei.

Ela mesma se disse curiosa com o assunto, pois não entendia o que era, não sabia como chamar, como funcionava ou como trabalhar isso na escola. E pasmem, ou não, essa coordenadora em questão tem mais de vinte anos de experiência na educação.

Não é culpa dela, ela foi um amor comigo tentando entender tudo. A culpa é que insistimos em não encarar os nossos problemas. Insistimos em uma sociedade linda, branca, de olhos azuis, onde todos os alunos vão ser futuros médicos, engenheiros e bailarinas.

Alguns pais, inclusive, acreditam que bailarinas ganham dinheiro na nossa cidade! Essa Coordenadora, que também é professora, é mais uma vítima da grande problemática que nós professores e professoras estamos enfrentando todos os dias, que é o “emburrecimento”. Emburrecimento dos pais dos nossos alunos, emburrecimento dos nossos alunos, emburrecimento dos nossos governantes, estamos vivendo uma fase crítica de emburrecimento coletivo, o imediatismo.

Não estamos acostumados a ver pessoas trans em escolas, nem como alunos e alunas, nem como professores e professoras. Muito menos como diretores ou diretoras. Para muitos, o lugar delas é na rua, se prostituindo, marginalizadas e alguns ousam dizer que estão nessa vida porque querem. Ninguém se pergunta, quem são os pais daquela pessoa, se ao menos tem família e, além disso, quais foram as condições que a levaram a estar nessa situação. Porque não a instigaram aos estudos e conseguir dessa forma um trabalho formal, “normal”, aceito pela sociedade? Onde estão as travestis? Para o nosso mercado elas não servem nem pra embalar a nossa compra de supermercado, pois pode incomodar e espantar os clientes. Emburrecimento e imediatismo.

Apontar, julgar, jogar na cara das pessoas os dogmas de moral e religião e nunca, jamais estender a mão pra essas pessoas. Eu estou falando nesse caso das outras pessoas trans, mas essa mesma sociedade costuma tratar da mesma forma gays, idosos, deficientes, negros, mulheres e uma infinidade de pessoas que sofrem algum tipo de discriminação e falta de oportunidade.

No caso das trans torna-se mais grave quando vemos nosso ex-prefeito e vereadores votando contra e/ou vetando nossos direitos, como o de ser chamada pelo nome social em ambientes de atendimento público, o uso do banheiro adequado para cada pessoa, a criação de um ambulatório específico para atender essas pessoas que precisam de acompanhamento psicológico e hormonal, entre outras questões que poderiam garantir o mínimo de dignidade para algumas pessoas que há anos estão abandonadas pelo poder público e, porque não dizer, pela sociedade. Alguns lugares até respeitam essa problemática, mas é tudo na base do bom senso. E o discurso deles é que a “família” venceu. Qual família venceu? A que nunca precisou de um atendimento específico? A que sempre se enquadrou nos estereótipos e se nega a pensar na possibilidade de existirem problemas? A família da travesti que está na rua não ganhou. A travesti não ganhou!

Nesse Dia dos Professores, revisito os meus objetivos de transformar a sociedade e, mais do que nunca, sei que essa missão ainda não está morta, mas desgastada por ver que pessoas como eu parecem invisíveis e sem voz. Ainda é complicado discutir sobre esse e outros assuntos em sala de aula, pois sofremos resistência da direção que é pressionada pelos pais. Imaginem vocês que uma professora de ciências pede autorização dos pais dos alunos de oitavos e nonos anos de uma certa escola para falar sobre educação sexual. Recentemente teve um caso em que o pai permitiu falar em educação sexual, mas não poderia falar sobre homossexualidade. O aluno em questão não conseguia falar em voz alta a palavra pênis!

Enfim, este é apenas um dos casos que conheço e, por isso, procuro ensinar junto à Arte a importância de respeitar não apenas o espaço, mas o outro em si. Se alguém faz algo diferente do comum, devemos entender que aquela pessoa é livre, assim como você. Não a magoe dizendo que ela está errada só porque para você é errado ou talvez não entenda. Deixe-a escrever a história dela. Para os mais jovens, essa lição é ainda mais fácil de absorver, mas a educação não fica só sob a responsabilidade da escola. A criança ouve ideias transgressoras, mas chega em casa, ouve piadas que o pai ou a mãe faz do professor efeminado que tem cabelo comprido e tingido. Enquanto isso, quando meus alunos menores perguntam se sou menino ou menina, fico lisonjeada, pois eles conseguem enxergar a mulher que existe em mim. E para resolver esse problema, com um sorriso no rosto e esperança no coração, respondo: podem me chamar pelo meu nome!

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