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Comportamento

Recheado de histórias, bolinho da sorte resiste nos lares mais tradicionais

Receita japonesa é mantida há séculos pelos "mais velhos" e passada de geração em geração.

Gustavo Maia | 31/12/2018 08:00
Dona Alice Ito, de 66 anos, mantém viva a tradição do moti, o bolinho da sorte japonês. (Foto: Gustavo Maia)
Dona Alice Ito, de 66 anos, mantém viva a tradição do moti, o bolinho da sorte japonês. (Foto: Gustavo Maia)

Quem vive em Campo Grande e tem algum contato com a cultura japonesa sabe que toda virada de ano já é tradição na associação nipo-brasileira daqui o ritual de preparo do bolinho de arroz que, conforme a crença, traz sorte no Ano Novo. Mas o chamado de moti ou mochi, o famoso bolinho japonês, recheado de histórias e significados, agora não reúne mais a comunidade.

A tradição resiste mesmo só em poucas casas de japoneses por aqui. Para conhecer um pouco mais sobre a história do moti, o Lado B visitou a família Ito. De presente, ganhamos até o segredo do preparo do bolinho.

Quem nos recebeu em casa foi Ricardo Ito, presidente da Sociedade Budista Nambei Honganji. Ele explica que a tradição do moti não desapareceu, mas por conta da rotina das famílias, ela agora fica em casa. “Talvez em cidades menores, onde todo mundo se conhece, seja mais fácil de manter a tradição. Aqui, como a cidade é muito grande, e as famílias moram longe, fica mais difícil de se reunirem nesse período do ano, ficam mais dispersas”. Ele acredita que dificilmente alguma família ainda siga a tradição original, de usar um pilão e forno à lenha para preparar o moti. “Minha mãe faz a receita, mas tudo no liquidificador e forno micro-ondas, ficou mais fácil com a ajuda da tecnologia”, avalia ele.

Masaru Ito, de 72 anos, relembra tradição mantida desde sua infância. (Foto: Gustavo Maia)
Masaru Ito, de 72 anos, relembra tradição mantida desde sua infância. (Foto: Gustavo Maia)

O pai de Ricardo, Masaru Ito, de 72 anos, observa que “quando é feita no liquidificador, a massa fica diferente da feita no pilão, como era antigamente. Não fica igual. Dá pra sentir a diferença”. Ele explica também que o arroz usado na receita do moti é um arroz especial, o motigome, diferente do arroz usado para outros pratos, como o sushi.

Ainda sobre a produção do moti, Masaru explica: “primeiro tem que cozinhar o arroz no vapor, depois tem que amassar e aí a massa vai pro pilão. Ela fica uma pasta, uma massa fina parecendo massa de pastel”. Apesar de saber como se faz o bolinho, as tarefas sempre foram divididas: a mulher era a responsável pelo preparo do arroz e a parte de pilar a massa cabia ao homem. Hoje, com a chegada da tecnologia, a função do homem, de pilar o arroz, acabou desaparecendo e quem faz toda a receita é dona Alice Ito, esposa de Masaru, “enquanto ele paga a conta da energia”, brinca o casal. Ricardo aproveita o gancho para se justificar por, aos 37 anos, ainda não ter aprendido a tradição: “por isso eu não aprendi a fazer, não existe mais pilão. Inventaram o liquidificador”, brinca ele.

Dona Alice conta que antigamente o moti era cozido numa panela de vapor, como a que é usada para fazer a receita nordestina do cuscuz. E é ela quem ensina a receita em que o pilão foi substituído pelo liquidificador e a panela de vapor pelo micro-ondas. O único ingrediente usado na receita, além da água, é o arroz motigome, ou mochigome, que pode ser comprado na Feira Central, em armazéns de comida japonesa ou até mesmo em alguns supermercados.

Arroz motigome é vendido na Feira Central. (Foto: Gustavo Maia)
Arroz motigome é vendido na Feira Central. (Foto: Gustavo Maia)

O arroz precisa ficar de molho da noite para o dia. O próximo passo é bater no liquidificador com um pouco de água, o suficiente para conseguir bater. É quando o arroz vira massa. E é a massa que vai ao micro-ondas por 20 minutos. A dica de Dona Alice é cobrir a forma com plástico filme e fazer uns furinhos para facilitar o cozimento. Com a massa pronta, é a hora de modelar o bolinho, e mais uma dica aparece: “tem que ser com a massa quente e pra ela não grudar na mão, eu uso maisena ou polvilho doce”, revela ela. Batido, cozido e modelado, está pronto o moti.

Masaru conta que desde pequeno via o pai seguindo o ritual, e foi assim que ele aprendeu. “E meu pai também aprendeu assim, vendo o meu avô fazer. A gente plantava o arroz, colhia, descascava, o processo todo até chegar no moti pronto. Com 12 anos eu comecei a ajudar com o tsuti, o martelo de madeira que a gente usava pra amassar o arroz no pilão”. Ele lembra que na plantação de arroz de seu pai em Lavínia, no interior de São Paulo, um espaço sempre era reservado para o plantio do arroz motigome, especialmente para a receita de fim de ano. “A gente colhia uns três ou quatro sacos de motigome e dava pra fazer moti pra família inteira e até pra compartilhar com a vizinhança”. Os donos das máquinas de processamento de arroz, conta Masaru, já sabiam que no fim do ano os japoneses levariam um arroz diferente para ser processado. O arroz motigome, explica, não podia ser misturado com outro tipo de arroz, para não prejudicar a receita do moti, por isso as máquinas tinham que ser totalmente lavadas, o que incomodava os donos das processadoras. “Não podia ter nenhum grãozinho do outro arroz, senão estragava a receita do moti. Então eles não gostavam muito dessa história de moti, até cobravam um pouco mais. Mas não tinha problema, todo ano a gente tava lá com o motigome”, relembra.

Inicialmente, segundo a tradição, o bolinho moti era feito e oferecido aos deuses para agradecer as safras do ano e pedir boas colheitas no futuro, mas com o passar do tempo e a mudança da vida rural para a urbana, o bolinho acabou servindo para agradecer por tudo que aconteceu no ano e para pedir sucesso no ano vindouro - seja na saúde, no amor, no dinheiro - sendo comido no dia 1º de janeiro, como a primeira refeição do ano. Masaru explica que o moti também é comido com uma sopa de legumes tradicional chamada ozouni. Mas o moti não é feito apenas para ser comido. O verdadeiro segredo do bolinho está no “kagami moti”, o ritual de colocar dois bolinhos em lugares específicos na casa, no trabalho e até no carro. “Kagami moti é um moti grande e outro menor em cima. Hoje eu coloco no carro, no meu local de trabalho, aqui em casa, mas antigamente a gente colocava em tudo que estava relacionado ao nosso trabalho: no trator, nas enxadas, no arado, nos maquinários, em tudo. O que a gente tinha usado pra conseguir o nosso sustento, a gente colocava o moti. Como eu sou salgadeiro, coloco no cilindro que eu uso e agradeço”, ensina Masaru.

Outro lugar que recebe o bolinho é o altar que eles têm em casa, diz Ricardo, como uma oferenda. “Kamidana é o santuário xintoísta, e o butsudan é o oratório budista. No Japão essas duas religiões estão muito enraizadas na cultura, então nas casas das famílias japonesas tradicionais você vai ver esses dois altares”, explica ele. Apesar de terem os dois altares em casa, a família só conhece o significado dos elementos do oratório budista. Eles também decorarem o kamidana “para seguir as tradições dos antepassados”. Masaru decora o altar do jeitinho que aprendeu com seu pai: uma garrafa de saquê, um copo com água, a vela e um vaso com ramos de nandina, também conhecida como avenca-japonesa.

Butsudan, o altar budista, é preparado para receber o moti. (Foto: Gustavo Maia)
Butsudan, o altar budista, é preparado para receber o moti. (Foto: Gustavo Maia)
Senhor Masaru prepara o kamidana, o altar xintoísta. (Foto: Gustavo Maia)
Senhor Masaru prepara o kamidana, o altar xintoísta. (Foto: Gustavo Maia)

Já sobre o butsudan, que geralmente é colocado num quarto, Ricardo conta o que cada item simboliza: “essa planta no vaso representa os seres e a nossa impermanência, porque de manhã ela tá viva e bonita, mas no fim do dia ela tá murcha, já morreu. A fumaça do incenso representa os ensinamentos do Buda, a doutrina, porque não tem impedimento para a fumaça - ela passa até por debaixo da porta - e o ensinamento também é assim. E a vela significa a iluminação”.

Para o hábito de colocar o altar budista sempre num local mais reservado da casa, eles também têm uma explicação curiosa. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão escolheu lutar no Eixo, ao lado da Alemanha e da Itália, contra os Aliados, dentre eles o próprio Brasil. Por isso a comunidade japonesa que vivia aqui no país sofreu uma forte repressão policial. Masaru, que na época era criança, recorda os apuros que os homens da família enfrentaram: “se tivesse mais de três japoneses juntos, eles levavam pra delegacia. A polícia entrava nas casas e não podia ver nada de cultura japonesa. Meu pai e meu irmão, que tinha 13 anos na época, foram presos um dia porque estavam jogando beisebol com outros japoneses na colônia da fazenda. O camburão chegou e levou todo mundo”, lembra o patriarca.

Ricardo explica que a tradição do moti foi incorporada ao budismo por conta da cultura japonesa. Quando o budismo foi da Índia para o Japão, que era xintoísta, o moti já existia. O budismo foi sempre se adaptando à cultura local, tanto na China e na Coréia quanto no Japão, e aqui no Brasil não seria diferente. “Existe um forte sincretismo na cultura japonesa. O Japão tem tradições que vêm do confucionismo, outras do xintoísmo, outras do budismo, e aqui no Brasil, os nossos antepassados aderiram ao cristianismo. Tem até árvore de natal aqui em casa”.

Sobre a tradição da feitura do moti estar desaparecendo das associações nipônicas, ele comenta que assim como hoje nós não precisamos matar e depenar o frango para poder comer - vamos ao mercado e compramos um frango já temperado que só precisa ser assado - as pessoas estão preferindo comprar o moti pronto para dar tempo de cumprir a tradição, participar das festas de Natal e ainda dar atenção pros familiares e amigos. “O nosso estilo de vida, mais corrido, sempre sem tempo, faz a gente preferir comprar o que já está pronto, que é mais cômodo. Se eu não tivesse meus pais aqui, eu provavelmente compraria pronto”. Mesmo assim, dona Alice não dá o braço a torcer: “eu prefiro fazer. Já é costume”. É a modernidade que chegou. Mas a tradição resiste.

 

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Família Ito vive há quatro gerações no Brasil e segue tradição ensinada pelos antepassados. (Foto: Gustavo Maia)
Família Ito vive há quatro gerações no Brasil e segue tradição ensinada pelos antepassados. (Foto: Gustavo Maia)
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