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Comportamento

Terapia é jeito de Rosi enfrentar histórias diárias de violência contra criança

Ela é psicóloga responsável pelo setor psicossocial da Depca de Campo Grande e afirma que a maldade humana não tem limite

Alana Portela | 30/05/2019 08:15
Rosi é psicóloga e registra os atendimentos em um caderno (Foto: Alana Portela)
Rosi é psicóloga e registra os atendimentos em um caderno (Foto: Alana Portela)

Quem vê de fora nem imagina o fardo que é a responsabilidade de ouvir crianças e adolescentes vítimas de violência. Diariamente, são registrados casos de abusos sexuais, maus-tratos, abandono e negligência que fazem à psicóloga Rosiane Basualdo acreditar que a maldade humana não tem limite. Ela é coordenadora do Setor de Psicologia da Depca (Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente) e para encarar o trabalho, precisa de terapia.

“No começo, alguns técnicos têm dificuldade de ouvir os relatos. Os casos sempre chocam, a quantidade de atendimento é grande, e precisamos dessa válvula de escape, então faço sessões duas vezes na semana”, destaca a coordenadora também conhecida por Rosi.

O papel da psicóloga vai além de apenas sentar em uma sala fechada com a vítima e esperar por uma revelação. É preciso se colocar na pele da criança ou do adolescente que não consegue verbalizar o que está sentindo. “Tem vítima que chega aqui e trava, e para tentar conversar a gente brinca. Contudo, se não querem falar respeitamos, pois é direito deles. A nossa função na delegacia não é julgar se é certo ou errado, mas sim ouvir cada um e ampará-los. Depois disso é que fazemos o relatório e passamos para o delegado tipificar o crime”, explica.

Existem dois meios de fazer uma denúncia, ou pelo disque 100 ou indo até a delegacia localizada no bairro Amambai. “Parece brincadeira, mas tem criança que fica ajoelhada no milho ou em tampinhas de refrigerante. Apanha e fica com o corpo todo marcado, são queimadas”, disse.

A psicóloga usa a casinha para auxiliar no atendimento com as crianças (Foto: Alana Portela)
A psicóloga usa a casinha para auxiliar no atendimento com as crianças (Foto: Alana Portela)

Rosi conta que as vítimas quando chegam querem ser acolhidas, por isso, o atendimento diferenciado já começa na recepção, com cadeiras, televisão e brinquedos para se distrair. Enquanto aguardam na entrada, a psicóloga prepara seu emocional para chamar a pessoa em sua sala pequena e reservada.

É preciso estar prepara para atender alguém, pois são aqueles primeiros 20 minutos que vão apontar o rumo da história, se vira boletim de ocorrência, se salva uma vida ou deixa na mesma. “Fazemos perguntas sobre onde ela mora, se ela sabe onde está e desmistificamos o medo que a pessoa tem de delegacia. Temos alguns brinquedos que ajudam no atendimento e com jeitinho, pedimos para contar o que aconteceu. Algumas crianças choram, se escondem debaixo da mesa”, relata.

A dor, medo, raiva, angústia, tristeza e pânico sobrecarregam, e a emoção pode ser transferida entre a vítima e o profissional. “Sofro porque é uma pena que tenha tanta violência, sou mãe. Contudo, não posso falar das minhas angustias, pois tenho que resolver o problema. Já na terapia falo e choro. Tem que aprender a lidar com o sentimento, temos que usar a neutralidade e entender que a violência existe”, afirma.

Todos os atendimentos são registrados em um caderno que mostra que de janeiro a 29 de maio deste ano, o departamento psicossocial ouviu 893 crianças e adolescentes. Rosi trabalha na Depca das 8h às 15h de segunda a sexta-feira e conta com uma equipe de mais duas psicólogas, uma estagiária de psicologia e uma pedagoga que vão até às 18h.

Ela é concursada desde 2002 e relata que nesse tempo de experiência sempre surgem casos chocantes, que impressionam pela crueldade. “A maldade humana não tem limite, é impressionante. Quanto mais ouço, mais aprendo. A cada dia, as coisas que escuto me surpreendem. Chegam casos que a gente não sabe o que fazer porque a mente humana é fértil”, desabafa.

Em 2009, a psicólogo sentiu a necessidade de afastar do setor, pois os anos ouvindo as denúncias poderiam refletir no seu psicológico. “Minha luz interna acendeu. Estava cansada de escutar tantos problemas, então sai. Fiquei seis anos na Sedhast [Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho]. Resolvi respirar fora e em 2015 retornei para o setor”, recorda.

A casinha se abre e ilustra como seria a residência da vítima (Foto: Alana Portela)
A casinha se abre e ilustra como seria a residência da vítima (Foto: Alana Portela)

Casos marcantes - Os registros de violência contra menores de idade aumentam na segunda e na sexta-feira. “Atendemos de 20 a 30 casos e tem dias que são tranquilos, isso quando não acontece o flagrante”, conta. A psicóloga revela que na segunda-feira (27), o setor de psicossocial atendeu 19 casos e ontem (29), até às 15h foram cinco. 

Nesse tempo que trabalha na área, Rosi comenta sobre um caso que a chocou. Um deles é o da criança de quatro anos vítima de maus-tratos, torturado como rituais de magia negra, em 2016. “Essa história marcou. Lembro que fui até o hospital e quando cheguei lá, vi o menino todo queimado, quase não falava. Cheguei bem perto, e quando fui falar veio a vontade de chorar. Fiquei mal o dia todo”, recorda.

Outras crianças que atendeu, foram os irmãos de Kauan de Andrada, assassinado aos 9 anos em Campo Grande, em 2017. "Atendi o caso, não esqueço disso", disse. 

A rotina demonstra também que nem sempre o espancamento provoca dores. “Atendemos um registro de bullying, teve uma criança que contou que a professora ficava falando do cabelo dela porque vivia preso e era mais durinho. Ela se sentiu mal porque a educadora estava discriminando pelo fato de ser negra e por conta do cabelo”, conta.

Em meio a tantas ocorrências, Rosi diz que sempre está com os olhos atentos. “Não podemos desconfiar de tudo e de todos, mas precisamos de atenção porque o abusador não tem perfil e pode ser aquela pessoa que passa uma imagem boa. Ficamos atentas, não desconfiada, pois podemos ficar psíquicas”, disse.

O trabalho na delegacia deixa lições para os pais: "atenção ao que os filhos veem e acreditem neles quando contar alguma coisa. É duro ouvir uma criança ou adolescente dizendo que contou para uma mãe ou avó, mas que não fizeram nada por não acreditarem. A violência dentro da família é maior do que a de fora”, afirma a psicóloga.

A psicóloga conta os números de atendimento realizado em um dia pode ficar entre 20 e 30  (Foto: Alana Portela)
A psicóloga conta os números de atendimento realizado em um dia pode ficar entre 20 e 30 (Foto: Alana Portela)

Reativação - O setor psicossocial da delegacia foi reativado em outubro de 2015, e naquele ano foram registrados 269 casos de violência contra crianças e adolescentes. Em 2016 o número aumentou para 900, enquanto em 2017 foram 1100 registros. Os casos continuaram crescendo e em 2018 foram 1400 pessoas.

“Neste ano, somente nos primeiros cinco meses já foram anotados 893 casos. É claro que existem casos que não viram boletim de ocorrência, mas todos passam pelo atendimento. A delegacia não trabalha com prevenção, só com crimes já ocorridos”, disse.

É considerado criança pessoa na faixa de 0 a 11 anos incompletos, e adolescente de 12 a 17 anos incompletos. No entanto, a delegacia também atende alguns maiores de idade com algum problema especial.

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