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Meio Ambiente

Grilagem avança e propriedades privadas já cobrem 26,6% do território Kadiwéu

Pesquisador aponta captura fundiária em área indígena no Pantanal; em 40 anos, áreas úmidas desapareceram

Por Vasconcelo Quadros, de Brasília | 09/12/2025 10:12
Grilagem avança e propriedades privadas já cobrem 26,6% do território Kadiwéu
Território Indígena Kadiwéu no Nabileque (Reprodução Facebook)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa de braços dados com lideranças indígenas e criou um ministério para atender os povos originários. Três anos depois, as demarcações andam em marcha lenta e o governo federal não consegue sequer proteger territórios homologados há décadas, como mostram os dados mais recentes sobre a situação da Terra Indígena Kadiwéu. Mais de um quarto do território está oficialmente sobreposto por registros privados em órgãos públicos.

RESUMO

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A Terra Indígena Kadiwéu enfrenta grave situação de grilagem, com 26,6% de seu território sobreposto por registros privados em órgãos públicos. Levantamento realizado por pesquisador da UFMS identificou 116.458 hectares de propriedades cadastradas irregularmente no INCRA e no CAR. O território também sofre com queimadas intensas, tendo perdido 52.885 hectares de ambientes naturais nas últimas quatro décadas. Em 2024, registrou seu maior incêndio, com 50,7% da área total queimada. A situação é agravada pela expansão da pecuária e pela redução drástica de áreas úmidas, que diminuíram de 9.917 para apenas 39 hectares.

Um levantamento do geógrafo Marcelo Ribeiro Mendonça, doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação da UFMS/CPTL (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas) e docente da Rede Estadual de Mato Grosso do Sul, identificou 116.458 hectares de propriedades cadastradas no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e no CAR (Cadastro Ambiental Rural). A sobreposição equivale a 26,6% de toda a TI Kadiwéu.

O estudo, um recorte da tese de doutorado em andamento, com defesa prevista para 2027, será publicado nos anais do Simpósio de Geografia Agrária (Singa) e aponta um cenário de grilagem ativa, pressão fundiária e avanço de pastagens que ajuda a explicar por que metade da terra indígena queimou em 2024, no maior incêndio já registrado.

A pesquisa, conduzida por Mendonça no âmbito de sua investigação sobre queimadas no Pantanal, tem como foco o Pantanal do Nabileque, a região que mais queima no bioma. Baseado em dados de satélite, séries históricas do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), informações do MapBiomas e cadastros fundiários, o geógrafo analisou mudanças no uso do solo, sobreposição de propriedades privadas e a distribuição espacial das queimadas dentro do território indígena.

O diagnóstico é direto. O fogo ali não pode ser atribuído apenas à estiagem prolongada, funciona como instrumento de disputa territorial, associado à expansão da pecuária e à conversão ilegal de áreas nativas.

Grilagem avança e propriedades privadas já cobrem 26,6% do território Kadiwéu
Marcelo (de barba), junto com outros pesquisadores da UFMS em trabalho de campo. (Foto: Divulgação)

Vetor de disputa e transformação do território

Entre 2019 e 2024, a TI Kadiwéu registrou 6.775 focos de incêndio, segundo o INPE. Foram 3.938 em formações savânicas, 1.100 em florestas, 1.153 em vegetação campestre e 312 em áreas alagadas. A predominância de focos em vegetação nativa e até em ambientes tradicionalmente úmidos indica que a destruição avança sobre ecossistemas sensíveis, e não apenas sobre áreas já convertidas ou degradadas.

Para Mendonça, pesquisador de campo, essa distribuição coincide com zonas de maior pressão fundiária, áreas de expansão de pastagens e trechos onde intervenções irregulares reduziram a umidade natural e aumentaram a inflamabilidade.

Os estudos citados pelo pesquisador reforçam esse quadro. Dados do Ministério Público indicam que mais de 75% dos incêndios no Pantanal têm origem humana, podendo ultrapassar 90% em recortes específicos. Ou seja, não se trata de fenômeno estritamente climático. “Os dados geoespaciais apontam que o fogo ocorre onde existe disputa pela terra, avanço pecuário e presença de pastagens exóticas”, observa Mendonça. A crise ambiental, portanto, interage com dinâmicas fundiárias históricas e com a abertura de áreas para o gado.

A análise da evolução do uso do solo entre 1985 e 2024 reforça essa relação. Em quatro décadas, a TI Kadiwéu perdeu 52.885 hectares de ambientes naturais, entre florestas, savanas, áreas alagadas e corpos d’água. No mesmo período, áreas abertas e associadas à pecuária avançaram 51.669 hectares. Formações campestres quase dobraram, de 44.353 para 86.425 hectares, e as pastagens exóticas triplicaram, de 6.852 para 18.447 hectares. Um dos dados mais dramáticos é a redução drástica dos rios e lagos, de 9.917 hectares para apenas 39 hectares.

A perda dessas áreas úmidas, essenciais ao regime hidrológico do Pantanal, indica impactos combinados de assoreamento, queimadas sucessivas e intervenções irregulares na paisagem. Os dados mostram ainda que os campos alagados e áreas pantanosas foram reduzidos de 16.855 para 1.119 hectares.

Grilagem avança e propriedades privadas já cobrem 26,6% do território Kadiwéu
Placa oficial da Terra Indígena Kadiwéu, perfurada por disparos de arma de fogo (Foto: Divulgação)

Ausência estatal histórica

Na entrada da Terra Indígena Kadiwéu, a placa oficial que sinaliza o limite do território está perfurada por tiros. É um marco simbólico da pressão fundiária na região: o aviso estatal, que deveria representar proteção, virou alvo. Para lideranças Kadiwéu, a placa crivada funciona como mensagem, um recado de que a presença indígena continua contestada por quem reivindica áreas dentro da terra homologada.

As mudanças aumentam a inflamabilidade geral do território, criando condições para a expansão do fogo. No ano passado, em meio à antecipação do período seco, que segundo autoridades surpreendeu as equipes de combate, a TI registrou 273.032 hectares queimados, equivalentes a 50,7% da área total.

Para Mendonça, embora a seca precoce tenha agravado o cenário, há indícios de que atores privados podem ter se aproveitado da fragilidade ambiental. Ele evita conclusões categóricas por cautela acadêmica. O fato é que, em 2024, o fogo atingiu proporções inéditas mesmo quando comparado a outros anos de seca extrema.

A estrutura fundiária aprofunda a vulnerabilidade do território. A pesquisa identificou seis fazendas cadastradas no INCRA dentro da TI Kadiwéu, somando 19.940 hectares totalmente sobrepostos ao território indígena. Parte desses imóveis aparece no Sistema Nacional de Cadastro Rural como “títulos fantasmas”, registros sem comprovação jurídica de domínio, mas que alimentam a cadeia da grilagem.

No CAR, autodeclaratório, há 96.518 hectares sobrepostos à área indígena, o que reforça o risco de ocupação futura e de manobras para legitimação de posses privadas. Na prática, a ausência de cruzamento entre os sistemas fundiários e a omissão histórica do Estado permitem que áreas demarcadas permaneçam expostas a invasões, arrendamentos e conversões clandestinas.

Essa ausência estatal tem raízes antigas. A TI Kadiwéu, homologada em 1984 e reconhecida judicialmente em ação analisada pelo STF, sofre há décadas com disputas fundiárias. No início do século XX, a região foi alvo de doações de terra que se sobrepunham aos territórios tradicionais. Nos anos 1970, conflitos envolvendo posseiros e benfeitorias incendiadas marcaram a história local.

Em 1999, após um incêndio criminoso atribuído a fazendeiros, um grupo indígena ocupou a Fazenda Baía dos Carneiros em protesto. Segundo Mendonça, moradores da Aldeia Alves de Barros relatam que apenas recentemente passaram a receber assistência mínima do Estado, como infraestrutura e serviços básicos.

Grilagem avança e propriedades privadas já cobrem 26,6% do território Kadiwéu
Brigadistas kadiwéu em território indígena na prevenção ao fogo  (Reprodução Facebook)

O fogo como estratégia

A presença de 241 focos de incêndio em pastagens exóticas dentro da TI, identificados pelo pesquisador, reforça a ligação direta entre avanço pecuário e queimadas. Há ainda casos de arrendamento dentro da própria terra indígena, prática histórica que contribui para a abertura ilegal de áreas e para a presença de gado em trechos sensíveis do território.

Para tentar conter o ciclo, brigadistas Kadiwéu realizam queimas prescritas em parceria com Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), reduzindo a biomassa seca e diminuindo a propagação das chamas. A iniciativa, porém, não enfrenta as causas estruturais: grilagem, disputa fundiária, expansão da pecuária e ausência de fiscalização. Na avaliação do pesquisador, o fogo se transformou em ferramenta da disputa territorial, em que a destruição ambiental é, ao mesmo tempo, consequência e estratégia do avanço sobre terras indígenas.

Se há algo que o conjunto da pesquisa mostra é que a crise no território Kadiwéu transcende a narrativa climática. A devastação, acelerada a partir de 2019, reflete a combinação entre vulnerabilidade ambiental, pressão econômica, omissão do Estado e uma lógica fundiária que, apesar da homologação, continua operando dentro e contra a terra indígena. Homologada pela ditadura, já no final do governo do último dos generais, João Figueiredo, a estabilidade na TI Kadiwéu virou um desafio para a democracia.