Guerra sem fim: terra, poder e omissão fomentam violência no campo em MS
Famílias tradicionais, políticos e agropecuaristas sustentam disputa histórica enquanto governo federal falha

Com oito mandatos e uma base eleitoral crescente, de 13.303 eleitores em 1998 para 39.329 em 2022, o deputado estadual pelo PSDB José Roberto Teixeira, o Zé Teixeira, é a figura mais emblemática dos conflitos indígenas fundiários em Mato Grosso do Sul.
RESUMO
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O conflito por terras em Mato Grosso do Sul envolve uma complexa disputa entre indígenas Guarani-Kaiowá e ruralistas, tendo como figura central o deputado estadual Zé Teixeira (PSDB). Sua fazenda Santa Claudina, de 4.323 hectares, sobrepõe-se à área reivindicada pelos indígenas na Terra Indígena Guyraroká. A situação é agravada pela omissão governamental e violência policial, segundo o Conselho Missionário Indigenista (Cimi). O impasse jurídico no STF e a resistência de oligarquias regionais dificultam a demarcação de terras, enquanto o valor bilionário das propriedades intensifica as disputas. O governo federal mantém postura omissa, apesar da criação do Ministério dos Povos Indígenas.
Presente em todas as comissões importantes relacionadas ao agronegócio, ele é proprietário da Fazenda Santa Claudina, uma gleba de 4.323,59 hectares em Caarapó, das quais 4.192,41 hectares se sobrepõem à área que os Guarani-Kaiowá reivindicam como originária, fértil de 11.400 hectares no Sul do Estado.
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A Terra Indígena Guyraroká, reconhecida pela Funai, teve sua homologação anulada pelo Supremo Tribunal Federal em 2014, pressionado por produtores e parlamentares da região. No último fim de semana, foi palco de mais um conflito, com incêndio na sede da Fazenda Ipuitã provocado pelos indígenas, em represália ao suposto sequestro de uma adolescente.
Teixeira simboliza a resistência ruralista contra a demarcação de terras indígenas. Pecuarista e líder da bancada ruralista, atua política defendendo o “marco temporal” e mantém vínculos estreitos com entidades do agro, funcionando na prática como ponte entre o poder econômico e o Legislativo, o segmento que controla o agronegócio e, por extensão, os conflitos pela terra.
Ele é a face mais visível de oligarquias regionais que reúnem famílias de sobrenomes tradicionais como Pedrossian, Arcoverde, Camacho e até os paranaenses Sperafico, consolidando o sistema ruralista e integrando política e domínio econômico em litígio com indígenas.
Levantamento do site De Olho Nos Ruralista sustenta que dos 42 políticos que se dizem donos de áreas sobrepostas a terras indígenas, 17 estão no Estado. A repetição histórica da violência e a omissão institucional criam um padrão estrutural, como afirma o coordenador do Conselho Missionário Indigenista (Cimi) em Mato Grosso do Sul, Matias Rempel: “Há uma regularidade de ilegalidades. O Estado repete os mesmos crimes há décadas.”
Rempel considera Teixeira um dos principais obstáculos aos direitos indígenas: “Ele é fundamental para os invasores, porque faz a Assembleia agir conforme interesses privados.” Em nota, o deputado condena a “manipulação de indígenas para invadir propriedades” e responsabiliza o Cimi pelo incêndio na Fazenda Ipuitã, vizinha à sua, mas dentro da mesma gleba sobreposta, afirmando que todos os responsáveis responderão judicialmente.
Em meio ao clima de tensão, Teixeira acrescenta: “Temos provas concretas de que o Cimi alugou os ônibus que transportaram os indígenas até a sede da Fazenda Ipuitã e que seus dirigentes incentivam ações violentas como forma de chamar a atenção de organismos internacionais para essa fraude que é a demarcação.”
A acusação contra uma ONG ligada à Igreja Católica levou o juiz aposentado Leador Machado, diretor do Departamento de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário, a rebater, explicando que o Cimi apenas auxiliou na logística da viagem, sem participar nem financiar ações de retomada territorial. Machado chefiou uma missão interministerial que investigou denúncias de violência policial e despejo de agrotóxicos em áreas ocupadas pelos indígenas.
Raízes históricas: violência e a repetição de desigualdades estruturais
O conflito atual ressoa com uma história de quase três séculos. Os Guarani viveram seu apogeu em reduções jesuíticas que se estendiam do atual Rio Grande do Sul a 29 comunidades prósperas na região do Prata. Nelas, ergueram por mais de um século e meio um sistema de autogestão coletivo, de viés cristão, que o jesuíta suíço Clóvis Lugon chamou em seu livro de A República "Comunista" Cristã dos Guaranis, e que chegou a ser estudado pelos ideólogos do socialismo moderno.
Hoje, os embates envolvem os mesmos protagonistas: indígenas buscando preservar território ancestral e ruralistas defendendo propriedades consolidadas. A tensão ecoa o passado e revela a persistência de desigualdades históricas.
A omissão do governo federal agrava o impasse. Para Matias Rempel, a gestão central tem sido permissiva com a ocupação irregular: “Se o poder central não tomar coragem, a coisa degringola. São múltiplos interesses por trás dessa história.” Ao mesmo tempo, a Polícia Militar e DOF agem, muitas vezes, sem mandado judicial. “Em alguns casos não há ordem judicial, não há nada. uma regularidade de ilegalidades”, denuncia.
A advogada Luana Ruiz Silva, filha dos donos da Fazenda Barra, em Antônio João — área que estava sobreposta à TI Nhanderu Maragatu —, é outro elo estratégico do agro. Primeira suplente de deputado federal pelo PL, contratada pelo governo para cargo de assessoria com salário de R$ 22 mil, especializou-se em direito agrário e assessora frentes parlamentares. Atuou como assessora do então Secretário de Assuntos Fundiários no governo Bolsonaro, Luiz Antônio Nabhan Garcia e transformou a não demarcação em causa e negócio lucrativo.
Luana contesta os métodos da Funai, que, segundo ela, “atua de forma ideológica e sem base técnica”. No curso das demarcações, nos últimos meses, afirma, 38 produtores foram notificados pela Funai apenas em Caarapó e Amambai, e há cerca de 150 pontos de conflito abertos no Estado, envolvendo 2.500 propriedades rurais impactadas pelos movimentos de retomada indígena. “Essas notificações criam um clima permanente de insegurança jurídica, impedem o acesso a crédito e desvalorizam as terras. Muitos desses produtores têm títulos antigos e vivem sob ameaça constante”, afirma.

Impunidade e omissão no campo
A violência histórica acompanha os interesses econômicos. Massacres e ataques em Guapoy, Amambai, Guyraroká e Caarapó mostram padrões de ações ilegais com conivência estatal. A família de Luana é suspeita de participação nos assassinatos do indígena Neri Gomes, durante conflito na Fazenda da Barra em 2024. Outro indígena, Simeão Vilhalba, foi morto em 2015 no mesmo local.
“O Estado repete os mesmos crimes há décadas. Inventam inimigos invisíveis para esconder o crime real, sempre para limpar o sangue das mãos de polícia e fazendeiros”, afirma Matias.
O valor econômico das terras intensifica a disputa. A área onde estão as fazendas de Zé Teixeira e a Ipuitã tem valor estimado em cerca de R$ 1 bilhão. O acordo de Antônio João, que indenizou fazendeiros com R$ 266 milhões, parte à vista por terra nua e benfeitorias e parte convertida em precatórios, que Luana diz representar 20% do valor real, é citado pelo Cimi como precedente perigoso: “O pagamento prévio condicionou o direito de posse, abrindo brecha para expansão do agronegócio.”
O Cimi alerta que o projeto de lei relatado pela senadora Tereza Cristina (PP-MS), que pretende regularizar áreas de até 2.500 hectares na faixa de fronteira, reforça a ameaça de legalização da grilagem. “Ruralistas veem o Estado como banco de negócios. Tentam titular terras que depois serão contestadas pela Constituição”, diz Matias.
Mesmo com esforços de mediação política, como os do deputado Vander Loubet, presidente estadual do PT, que busca soluções de regularização e políticas para reduzir conflitos, avaliando o acordo de Antônio João como baliza, Matias observa que “o PT estadual e federal tem sido omisso, e a força do agronegócio domina praticamente tudo em Mato Grosso do Sul. Vander tenta agir dentro do sistema, mas a estrutura de impunidade continua prevalecendo.”
O deputado federal e agropecuarista Rodolfo Nogueira (PL-MS), presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, põe mais pilha no conflito, acusa omissão da Força Nacional diante de invasões. Em Caarapó, segundo ele, agentes federais “assistiram de camarote” à destruição de uma fazenda, enquanto a Polícia Militar tentava conter invasores.
Nogueira anunciou que vai convocar o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, evidenciando que o conflito envolve outras duas camadas, as mais importantes: forças de segurança e, no topo, o governador Eduardo Riedel e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, este com posição marcada pela omissão diante do poder desproporcional que o poder e o agro exercem.
Lula criou um Ministério dos Povos Indígenas cujo papel tem sido de eloquência decorativa, enquanto no Sul do Estado faíscas gravitam no caldeirão de explosivos. A reportagem procurou Marcelo Bertoni, presidente da Famasul, que participou de todas as tratativas como representante dos produtores, mas ele se negou a falar.
O impasse jurídico da TI Guyraroká, travado no STF por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, mantém o clima de tensão. Matias defende a devolução do caráter declaratório à área: “Enquanto o processo fica parado, a violência continua. O Estado precisa agir com postura firme e punir os responsáveis.”
O retrato final de Mato Grosso do Sul mostra herdeiros de famílias tradicionais, políticos e advogados rurais aliados a forças policiais que bloqueiam em todas as frentes o movimento pela retomada e a proteção de territórios indígenas. Enquanto o governo estadual permanece aliado de fato aos interesses privados, o federal falha em sua obrigação de proteção e em assumir o papel central na solução de uma demanda toda sua, envolvendo indígenas e terras da União.
“Criam distrações, mas a questão central é a violência policial e o processo de demarcação travado. Sempre há um inimigo invisível: ora o comunismo, ora a reforma agrária. É o mesmo discurso para manter o poder sobre a terra”, sintetiza Matias.
 



 




 
 
 
 
