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Política

Corrupção endêmica protege fronteira de MS como trincheira de facções globais

CPI expõe poder do crime organizado em área abandonada, com Estado fraco, polícia vulnerável e rotas abertas

Por Vasconcelo Quadros, de Brasília | 26/11/2025 14:10
Corrupção endêmica protege fronteira de MS como trincheira de facções globais
Militar na fronteira de Mato Grosso do Sul com a Bolívia, em ação da Operação Ágata (Foto: 18ª Brigada de Fronteira)

Realista e assustador, o diagnóstico revelado pela CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Crime Organizado expõe um país em que a ausência do Estado e a expansão das facções, com raízes profundas na Bolívia e no Paraguai, áreas que margeiam Mato Grosso do Sul, avançaram no mesmo ritmo da corrupção policial e da infiltração criminosa na política e na administração pública.

RESUMO

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A CPI do Crime Organizado revelou um cenário alarmante sobre a expansão das facções criminosas nas fronteiras de Mato Grosso do Sul com Bolívia e Paraguai. O diagnóstico aponta para um avanço da corrupção policial e infiltração criminosa na política, com o PCC operando um sofisticado sistema de lavagem de dinheiro internacional. A ausência do Estado e a falta de estrutura nas áreas fronteiriças contribuem para o fortalecimento das organizações criminosas. Especialistas alertam que o Brasil caminha para se tornar um narcoestado, com facções controlando territórios através da corrupção sistêmica e redes internacionais, enquanto o poder público falha em estabelecer um plano nacional de segurança efetivo.

O delegado Leandro Almada, diretor de Inteligência da Polícia Federal, e o promotor paulista Lincoln Gakiya descrevem um cenário de degradação institucional em que o PCC (Primeiro Comando da Capital), nascido nos presídios e convertido no maior conglomerado criminoso das Américas, opera um sistema moderno de lavagem de capitais que atravessa fronteiras, captura agentes públicos, penetra setores econômicos formais e ocupa o vácuo aberto por décadas de inoperância estatal.

Corrupção endêmica protege fronteira de MS como trincheira de facções globais
Diretor de Inteligência da PF, Leandro Almada da Costa fala à CPI do Crime Organizado (Fonte: Agência Senado)

Estado frágil, facções em expansão - A facção cresce em velocidade “exponencial”, sustentada por redes internacionais e corrupção sistêmica, diante de um Estado incapaz de integrar suas próprias forças. “O Brasil caminha a passos largos para tornar-se um narcoestado”, advertiu Gakiya, ao contrapor dois polos: de um lado, uma organização que planeja, financia, infiltra e domina; de outro, um poder público que, em 40 anos de redemocratização, jamais ergueu um plano nacional de segurança ou estruturou a cooperação mínima entre suas corporações.

Almada reforça o quadro ao narrar a corrosão institucional na Bolívia, hoje peça-chave no tabuleiro criminal. Nem prisões de alto impacto escapam de disputas entre policiais e militares corruptos. “Lá, 90% das operações vazam”, disse, ao relatar a captura do traficante Marcos Roberto de Almeida, o Tuta — concluída graças a uma manobra de urgência para evitar sabotagem. “No dia seguinte, vimos pelas câmeras que ele tinha apoio de militares de alta patente.”

Corrupção endêmica protege fronteira de MS como trincheira de facções globais
Promotor Lincoln Gakiya durenta CPI sobre o Crime Organizado (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

O território do PCC - O promotor amplia o mapa: Paraguai, Bolívia e toda a faixa de fronteira sul-mato-grossense formam o território operacional do PCC, que controla, via corrupção, centros de produção de cocaína também no Peru e Colômbia e articula rotas que conectam a região a mercados globais, como São Paulo e Europa.

Nesse modelo, menos de cem pessoas exercem poder estratégico num universo de dezenas de milhares que não podem ser tratados como líderes pela proposta de lei antifacção. Presos ou soltos, todos são “mafiados”. Parte da cúpula opera da Bolívia, entre eles Patrick Wellington Salomão (“Forjado”) e Pedro Luiz da Silva (“Chacal”), que coordenam ações no Brasil com um simples smartphone.

Corrupção endêmica protege fronteira de MS como trincheira de facções globais
Deputado federal Dagoberto Nogueira (PSDB), que já exerceu o cargo de sercretário de segurança em MS (Foto: Divulgação/Câmara dos Deputados)

Abandono da fronteira - O desastre institucional é nítido na fronteira sul-mato-grossense, onde fragilidade estatal e coerção do tráfico se sobrepõem. O deputado Dagoberto Nogueira (PSDB-MS), duas vezes secretário de Segurança do Estado, descreveu ao Campo Grande News o desequilíbrio que empurra policiais mal remunerados para o centro da engrenagem criminosa.

“O policial ganha quatro, cinco mil. O traficante oferece cem mil para passar um carregamento. É difícil resistir.” Para ele, o mapa revela o vazio físico do Estado: “Não tem delegacia na fronteira. Só Ponta Porã, Dourados e Naviraí. Tinha que ter em Coronel Sapucaia, Paranhos, Sete Quedas.” O resultado é um ciclo de impotência: “O cara prende cinquenta quilos de maconha, tem que levar para Naviraí, duzentos quilômetros. Passam cinco caminhões enquanto ele está indo.”

O senador Alessandro Vieira (MDB-SE), relator da CPI e do PL Antifacção, reforça o eixo comum dos depoimentos: o fracasso brasileiro no enfrentamento às facções não decorre de lacunas legislativas, mas de omissão política, ausência de estrutura e falta crônica de financiamento. Vieira destaca o “custo pessoal incalculável” pago por investigadores, policiais e promotores, como Gakiya, que enfrentam organizações mafiosas e redes de corrupção enraizadas. E desmonta a crença de que penas mais duras resolveriam o problema:

“Marcola tem 330 anos de condenação. Resolveu? Acabou o PCC? Não. O problema do Brasil não é a lei. É a ausência de vontade política.”

Para o senador, endurecer penas não altera a realidade enquanto o Estado permanecer desorganizado e incapaz de atuar de forma integrada. “O institucional falha e quem sustenta é o cara da ponta. A ferro e fogo.” Ele citou o quinto policial morto na Operação Contenção, no Rio, para ilustrar a distância entre discurso e realidade. Ao discutir o PL Antifacção, foi categórico: “Para ser sério, a gente vai inverter a lógica: primeiro orçamento, depois regra.”

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Marcos Camacho, o Marcola, considerado o chefe geral do PCC , que cumpriu parte da pena no presídio federal de Campo Grande (Foto: Arquivo)

A fragmentação entre polícias e o protagonismo individual mantêm o Estado vulnerável. “O sacrifício desses policiais não alterou absolutamente nada na realidade do crime”, resumiu. Vieira delineou o norte da CPI: ouvir técnicos, abandonar improvisos, integrar instituições, proteger agentes ameaçados e instalar, com orçamento real, a política nacional de segurança que o país nunca teve.

Andar de cima e captura institucional - É consenso entre especialistas que sem enfrentar a corrupção policial, e sem expurgar suas próprias bandas podres, nenhum Estado combaterá facções como PCC e Comando Vermelho. A experiência da PF em 2003 mostrou que só há credibilidade quando a depuração começa dentro de casa. Operações como Anaconda e Navalha expuseram que o crime se alimenta da proteção no alto escalão.

O presidente da CPI, senador Fabiano Contarato (PT-ES), garante que a investigação alcançará o “andar de cima”, incluindo agentes públicos, políticos e membros do parlamento. Gakiya afirma que o alvo do PCC são os municípios, embora, como império que fatura R$ 12 bilhões ao ano, tenha força para chegar a Brasília. Ele lembra que em 2010, quando integrantes da facção defenderam financiar advogados em eleições para o Congresso, Marcola se opôs desdenhando a política: “O que nos interessa dois ou três deputados?”

Milícias, política e o “mercado de proteção” - Almada foi incisivo: “As milícias são produto direto do desvio de conduta de policiais.” Grupos nascidos como esquadrões de extermínio se transformaram em poderes paralelos que controlam territórios e cadeias econômicas com respaldo político. O diretor citou casos emblemáticos: um delegado da PF, policiais militares, ex-secretários e até um deputado estadual eleito em 2024, condenado por lavagem ligada a facção. A Operação Batismo revelou uma parlamentar atuando como porta-voz de milícia na Alerj. Esses episódios mostram o “mercado de proteção institucional” instalado nos balcões do Estado.

Corrupção transnacional e armas - O problema transnacional é igualmente grave. Almada destacou a Operação Dacovo, que rastreou mais de 16 mil armas do Leste Europeu e Turquia desviadas com participação de militares paraguaios de alta patente. As prisões evidenciaram que a corrupção extrapola fronteiras e torna Bolívia e Paraguai ambientes ideais para a logística do crime.

Ele não poupa a própria PF: “É característica desses grupos a capacidade financeira de infiltrar poderes e forças públicas.” Defendeu auditorias rígidas, rastreabilidade e responsabilização exemplar. Alertou para fraudes digitais e fintechs “bolsão”, que vendem anonimato e ampliam a lavagem, defendendo regulação para rastrear criptoativos e bets.

Sobre a fronteira, Almada foi direto: o eixo Corumbá–Ponta Porã é prioridade do Projeto Mitra; as FICOs funcionam porque reúnem PF, polícias civis e militares e PRF no mesmo ambiente; e, sem fortalecer as polícias estaduais, hoje sucateadas e mal remuneradas, qualquer esforço federal será insuficiente. “Ou a gente robustece as investigações das polícias judiciárias do Estado, ou nada feito.”

A engrenagem mafiosa - Almada e Gakiya definem a trilogia do crime empoderado e corruptor: facções, milícias e a contravenção, jogo do bicho, apostas e máquinas, agora digitalizada. O ponto de divergência é que Gakiya vê o PCC com características mafiosas; Almada acha que a contravenção é “o que mais se aproxima de uma máfia” no Brasil, pela capacidade de corromper e impregnar o sistema político. Ele advertiu que decisões judiciais equivocadas podem manter líderes operando de dentro da cadeia ou de casa.

Para Almada, não é preciso criar uma agência antimáfia: é necessário fortalecer PF, MP, polícias civis, Receita e Coaf/UIF com pessoal qualificado, tecnologia e protocolos integrais. “Fusion centers funcionam, mas só se houver protocolo. Sem isso, viram cenografia.” Com Coaf e Receita estrangulados, a repressão financeira seguirá tropeçando.

Gakiya reforça que o PCC deixou de ser uma facção regional e opera como organização mafiosa transnacional, presente em todos os estados, no Distrito Federal e em 28 países. Com alianças com máfias europeias, especialmente ’Ndrangheta e Camorra, e faturamento de players estratégicos, a facção estruturou uma engenharia financeira baseada em advogados tributaristas, fintechs pouco reguladas, criptomoedas e plataformas de apostas.

O alerta - Para ele, o salto não veio da ousadia criminosa, mas do colapso estatal: presídios desorganizados, comunidades abandonadas, fronteiras desprotegidas e instituições fragmentadas. “O problema do Brasil não é falta de lei. É falta de coordenação.” Lembrou que operações como Carbono Oculto e Fim de Linha só ocorreram por iniciativa individual, não por estrutura permanente.

O deputado Dagoberto corrobora: a PF chega aos líderes do crime porque eles próprios se expõem, ostentam patrimônio incompatível, pagam carros em dinheiro vivo e exibem luxo nas redes sociais. Sem integração entre polícias, as investigações dependem quase exclusivamente da PF.

A advertência do promotor jurado de morte pelo PCC é direta: enquanto o Estado permanecer desorganizado, vulnerável à corrupção policial e incapaz de integrar suas forças, facções seguirão expandindo-se como corporações criminosas multinacionais, ocupando cada espaço que o poder público insiste em deixar vazio.