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Reportagens Especiais

Rio que ajudou na formação de comunidade também consome território quilombola

Família de tradição agrícola e pesqueira construiu morada e teme por terreno em Corumbá

Por Silvia Frias | 19/02/2024 07:47
Campo Grande News - Conteúdo de Verdade
Marciliana (blusa azul) à beira do Rio Paraguai, na área doada para a comunidade (Foto: Marcos Maluf)
Marciliana (blusa azul) à beira do Rio Paraguai, na área doada para a comunidade (Foto: Marcos Maluf)

A figura pequena de Marciliana Floriana da Silva, 65 anos, se posiciona, em pé, à beira do Rio Paraguai. Com uma das mãos à frente, indica a margem, onde antes era uma faixa maior de terra firme, usada na produção de hortaliça da Comunidade Quilombola Ribeirinha Família Ozório, localizada em Corumbá, a 428 quilômetros de Campo Grande. “Olha onde o rio chegou”, lamenta.

Ano a ano, as águas avançam e ameaçam o território da comunidade, que fez da agricultura e da pesca o meio de subsistência ao longo dos anos. No terreno doado pela prefeitura, 12 casas foram construídas, ocupadas por 44 famílias, descendentes dos que desbravaram a região.

De cima de uma casas, a vista do território que foi destinado à Família Ozório (Foto: Marcos Maluf)
De cima de uma casas, a vista do território que foi destinado à Família Ozório (Foto: Marcos Maluf)

Além de melhorias na produção e ampliação da galeria fluvial que passa por dentro da comunidade, as famílias de Miguel Ozório querem cursos de educação no campo como forma de manter os mais jovens no município.

Chegada - O Rio Paraguai, que hoje representa ameaça, faz parte da trajetória da família rumo ao sul do então Mato Grosso uno. Quem conta de forma resumida essa história é Marciliana, produtora rural, chamada dona Márcia pelos familiares. Antes de se sentar, deixa de lado as botas e o facão usados na lida da horta.

“Conta tia, a senhora é matriarca”, apoia Laycillia Ozório, que também atua como presidente da Aquirrio (Associação da Comunidade Quilombola Família Ozório). Em volta, várias mulheres da comunidade se sentam, em frente a uma das casas de alvenaria e ao lado da galeria pluvial que passa no meio do território quilombola.

Galeria pluvial que corre por dentro da comunidade (Foto: Marcos Maluf)
Galeria pluvial que corre por dentro da comunidade (Foto: Marcos Maluf)

A produtora hesita, mas fala, de forma resumida. “Vieram descendo de chalana pelo Rio Paraguai, rio encheu e não voltamos mais, moramos aqui”, disse Marciliana. Essa movimentação aconteceu na década de 1950.

Mais detalhes da formação da família foram encontrados pela reportagem na tese de doutorado do professor João Batista Alves de Souza, que fez o estudo por dois anos, convivendo com integrantes da comunidade.

Miguel e Ercília Ozório se casaram e viveram em Coxim. Anos depois, se deslocaram pelo Rio Taquari, chegando a Corumbá pelo Rio Paraguai, onde moraram em acampamentos provisórios durante cinco anos. Alguns chegaram depois, como Marciliana, agregada ao grupo.

Produção de hortaliças mantida na comunidade, enquanto a cheia não invade a área (Foto: Marcos Maluf)
Produção de hortaliças mantida na comunidade, enquanto a cheia não invade a área (Foto: Marcos Maluf)

De 1964 a 1974, a família ia e vinha conforme o ciclo das águas, passando pelo Porto de São Pedro, Ilha Chané ou Ilha do Pescador, mantendo a pesca e a produção de hortaliças. “Teve uma hora que o rio encheu tanto que a gente não conseguiu voltar e ficou por aqui”, contou Marciliana. Foi na mesma época, em 1984, que foi realizada a criação oficial da Aquirrio.

Na pesquisa de João Batista, constam mais detalhes da formação familiar: Miguel e Ercília tiveram 15 filhos. Marciliana teve outros seis filhos com Miguel.

Inicialmente, a família morava em outro bairro de Corumbá e recebeu a promessa do prefeito Fadah Gattass de receber lote. “Queriam jogar a gente longe, e aí a gente falou que não, porque mexe com pesca, né? Tem que ficar perto do rio. Aí mandaram para cá”, explicou Marciliana.

Produção é usada para subsistência e vendida em mercados locais (Foto: Marcos Maluf)
Produção é usada para subsistência e vendida em mercados locais (Foto: Marcos Maluf)

A produtora rural diz que, em 1984, a área na região central, também identificada como Bairro Borrowski no mapeamento da prefeitura, foi repassada à comunidade quilombola. “Não tinha nada aqui, era só mato, caminhão de entrega parava ali em cima”, mostra a parte alta.

Na base da união, a família fez os alicerces da primeira casa, perto da Alameda Vulcano. “A hora que chegava aqui não tinha descanso, saía da pesca e vinha para obra”. Enquanto a morada era erguida, a família ficou durante um ano em barraco improvisado. “Mas não era essa lona de hoje, chique, era uma que molhava tudo”.

Angélica Rodrigues Ozório, 51 anos, filha de Miguel e Ercília, mãe de Laycillia é, também, uma das lideranças femininas da comunidade. Conta que, depois das construções e da melhoria dos acessos, apareceram pessoas dizendo que eram donas de terrenos.

Vista do terreno desbravado pela família Ozório (Foto: Marcos Maluf)
Vista do terreno desbravado pela família Ozório (Foto: Marcos Maluf)

No dia 16 de julho de 1985, foi expedido o título definitivo do terreno para Miguel Ozório. A certidão dada pela Fundação Cultural Palmares saiu no dia 6 de janeiro de 2010.

O reconhecimento como território quilombola, segundo ela, ajudou a oficializar a posse da área, a construção da galeria – com cobrança extra do Ministério Público por conta da enchente – e a pavimentação da rua.

Porém, o crescimento da família e a chegada de outros moradores, que não fazem parte da comunidade, deixaram a área pequena para a produção agrícola. A família precisa se dividir entre aquela área e outro sítio, no Taquaral, onde mora a outra matriarca, Ercília Rodrigues Ozório.

Perto de galeria, Marciliana observa sucuri nas águas: risco para crianças que brincam no local (Foto: Marcos Maluf)
Perto de galeria, Marciliana observa sucuri nas águas: risco para crianças que brincam no local (Foto: Marcos Maluf)

O espaço também é comprometido com o Rio Paraguai. “Vem seca, depois cheia, aí a terra fica pobre, tem que descansar a terra, aí família fez o plantio no sítio”, conta Angélica.

Marciliana, Angélica e Laycillia mostram a extensão da área, em que ainda há produção agrícola, mas que acaba, de um lado, na área desmoronada por conta da falta de finalização da galeria pluvial e à frente, com o Rio Paraguai, que “come” o território quilombola.

Antes, a família plantava arroz, milho, feijão e mandioca e, agora, se dedica à produção de hortaliça, vendida nos mercados locais. Pelo terreno, também há plantio de melancia.

Miguel (mais alto) com Ercília (esq), Marciliana (vestido estampado) e os filhos (Foto/Arquivo pessoal)
Miguel (mais alto) com Ercília (esq), Marciliana (vestido estampado) e os filhos (Foto/Arquivo pessoal)

Laycillia diz que a dificuldade é ter acesso a recursos federais e políticas públicas para melhoria da produção. Este ano, a Agraer (Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural) doou trator, usando no sítio no Taquaral. Há, ainda, a estufa que depende de licitação, cancelada depois que empresa desistiu do certame e foi reaberta, em andamento.

A extensão da galeria pluvial, que pode auxiliar na redução do assoreamento da área, depende de obra municipal, a orla do Rio Paraguai, segundo Laycillia.

A presidente da associação aproveitou a visita da ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, para reivindicar a abertura de cursos de educação no campo em Corumbá, uma forma de manter os mais jovens da comunidade no município, já que muitos até tem interesse em continuar mantendo o plantio, mas acabam sendo levados para outras atividades para garantir a subsistência.

Marciliana relembrou a chegada da família, vindo de Coxim para Corumbá (Foto: Marcos Maluf)
Marciliana relembrou a chegada da família, vindo de Coxim para Corumbá (Foto: Marcos Maluf)


Laycillia, Marciliana e Angélica na primeira casa construída pela família, "no braço" (Foto: Marcos Maluf)
Laycillia, Marciliana e Angélica na primeira casa construída pela família, "no braço" (Foto: Marcos Maluf)

A reportagem entrou em contato com a prefeitura e a informação é que uma empresa foi contratada para fazer o projeto de canalização dessa galeria, ainda sem prazo para início da obra. Não houve retorno sobre a construção da orla.

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