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50 anos de um golpe que ainda nos atinge

Por Carlos Eduardo Calvani (*) | 03/04/2014 09:20

Para Anivaldo Padilha, irmão de Koinonia

Luiz Caetano Grecco Teixeira, irmão de Koinonia e sacerdócio


Leonildo Silveira Campos, ex-professor e irmão de lutas e ministérios,

Ainda não completei 50 anos. Nasci dois anos após o golpe militar de 1964. Mas aquele golpe atingiu toda minha geração, além das gerações que nos precederam na oposição e que trazem ainda hoje as marcas físicas e emocionais de sua resistência ao totalitarismo.

A única memória concreta que tenho é de um episódio acontecido talvez em 1973 ou 74. Sei que foi em um destes anos por causa da escola na qual eu estudava com 7 ou 8 anos, ainda aprendendo a ler e a escrever. Um ruído diferente interrompeu a rotina das aulas vespertinas e um grupo de soldados (tinham, talvez entre 19 e 22 anos?) adentrou a sala e passou a revistar nossas mochilas. Estavam “cumprindo ordens” de alguns tresloucado superior. A professora ficou acuada e quieta no canto. Não sei o que procuravam. Mas lembro muito bem dos milicos fardados e empunhando orgulhosamente seus fuzis perante um grupo de crianças que mal saía das fraldas. Certamente ficamos com medo e intimidados. Hoje fico imaginando o que aconteceria se, por um deslize, descuido ou pressão psicológica, um dedo mal posicionado apertasse algum gatilho. Precisávamos daquela demonstração ou era simplesmente para amedrontar crianças que nem sabiam o que era comunismo?

Após a aula quando contei a meu avô o que acontecera, ele ficou indignado, e disse apenas: “cuidado… um dia você entenderá, quando tudo isso passar…”. Ele era funcionário administrativo de 3º. ou 4º. Escalão do DERMAT (Departamento de Estradas e Rodagens do antigo estado do Mato Grosso, antes da divisão territorial). Não cursara faculdade nem fazia parte de qualquer Partido Político da época. Era um “homem comum” que vivia no círculo “casa-trabalho-igreja”, com poucas excursões adicionais a outros círculos. O único ambiente “diferente” desse círculo ao qual me levava vez ou outra era o grupo DeMolay de uma loja maçônica da qual também se afastou mais ou menos na mesma época. Quando lhe perguntei porque não íamos mais à loja, sua resposta foi simples e curta: “tudo o que você aprendeu lá até agora será útil em sua vida, mas não confie mais nas pessoas que estão ali; elas estão comprometidas com os militares”.

Anos mais tarde fiquei sabendo que as lojas maçônicas no Brasil nunca mais foram as mesmas após 1964. O golpe atingiu profundamente as lojas que se dividiram após episódios traumáticos de “irmãos” traindo e entregando outros à tortura (os maçons perseguidos geralmente eram profissionais liberais da imprensa – jornalistas – educação, advocacia ou homens ligados à cultura e às artes). As lojas consideradas de maioria “esquerdista” “abateram colunas” e muitos filhos-da-viúva perseguidos desistiram de plantar acácias nos mesmos orientes de seus delatores. E aquela instituição que já fora considerada baluarte na luta contra o absolutismo e a favor da democracia, tornou-se o oposto. Tempos depois, lendo “Brasil nunca mais”, “Inquisição sem fogueiras”, “Protestantismo e Repressão” e outros textos, descobri que muitas lideranças religiosas também traíram qual Judas, lavaram as mãos qual Pilatos ou literalmente perseguiram e torturaram os que estavam sob seus cuidados pastorais.

Militares… volta e meia esse termo era pronunciado em casa, com certo medo ou até sussurradamente. Meu avô falava muito pouco, a ponto de alguns parentes o apelidarem familiarmente de “Zacarias”, o pai de João Batista que ficou mudo. Talvez, exatamente por isso, quando falava, eu parava para ouvir. A única vez em que o vi falar publicamente foi em um culto de uma congregação presbiteriana. O pastor, por algum motivo estava ausente e ele, como presbítero (líder leigo), ficou encarregado de dirigir o culto e pronunciar o sermão. Creio que eu tinha não mais que 9 ou 10 anos, portanto em 1975 ou 1976. O culto foi dirigido com poucas palavras e uma certa sobriedade nos gestos. Meu avô não falava… apenas gesticulava indicando o momento para ficar em pé ou para se sentar. Mesmo tendo apenas o curso “ginasial”, lia muito (devo isso a ele) talvez por isso, compreendia que a palavra é uma fonte de mal-entendidos. Preferia os gestos. Seriam, talvez, reflexos dos “segredos” que compartilhava com outros nos rituais da loja?

Lembro-me porém, de um detalhe inesquecível neste culto – seu sermão foi sobre a conversão do centurião Cornélio. Não tenho condições de recordar o conteúdo enfatizado, mas por algum motivo, lembro uma frase que se tornou alvo de comentários posteriores em casa: “até os militares podem se converter!’.

Novamente o termo “militares”…. no mesmo domingo, retornando do culto e durante algumas semanas seguintes, ouvi minha avó reclamando que ele não deveria ter dito o que dissera porque era “perigoso”. O “sermão”, porém, não causou qualquer problema à nossa família, talvez porque a congregação era pequena, com poucos freqüentadores, e ainda no seu início, reunindo-se em uma sala alugada na Rua Calarge. Mudou várias vezes de lugar e atualmente é a 1ª Igreja Presbiteriana Independente de Campo Grande, MS. Mesmo não recordando o teor do sermão, ainda me pergunto: por que ele dissera algo considerado “perigoso” por minha avó? Militares não podiam se converter? Ou estavam em um patamar espiritual tão elevado que não precisavam se converter?

Aos poucos o substantivo “militar” e o adjetivo “perigoso” começaram a se fundir m minha tímida percepção de garoto. Meu avô tinha certas restrições a um de nossos parentes – um de meus tios que trabalhava no departamento de comunicação de uma companhia aérea já extinta, e que fazia “serviços extras” durante as madrugadas e com quem meu avô não queria muito contato. Por algum motivo ele era também “perigoso”. Algumas vezes, quando perguntava à sua esposa onde estava o “tio Celso”, ela simplesmente respondia: “está de plantão, fazendo um servicinho extra, consertando cabos telefônicos”. Ele ainda está vivo, e só muito tempo depois fique sabendo que era funcionário do SNI (Serviço Nacional de Informação), encarregando de grampos e outras estratégias de espionagem. Hoje vive recluso e o máximo que faz fora de casa, pelo que sei, é jogar bozó e dominó com outros aposentados, e quando lhe perguntam algo sobre aquela época, simplesmente responde: “isso já passou”.

Tenho um amigo militar da reserva. Aposentado, ou como ele mesmo diz, “milico de pijama”. Por morarmos em condomínio, às vezes nos encontramos e eventualmente almoçamos juntos aos domingos na churrasqueira coletiva. É um senhor já de certa idade, e pelo pouco que sei, no final dos anos 60 e início dos anos 7, foi soldado, cabo e sargento, tornando-se oficial na 2ª metade dos anos 70, já no governo Geisel. Hoje é coronel aposentado. Gosta de Raquel Sheherazade.

É “de direita”, como dizemos em nossos círculos. Respeito-o por sua idade, mas não deixo passar oportunidade para que ele saiba que sou, teoricamente, “de esquerda”, se é que tais metáforas ainda fazem sentido. Curiosamente, ele toca violão muito e bem e sabe “de cor” a letra de “Caminhando e cantando”, “Apesar de você” e outras canções de resistência da época. Às vezes penso que ele está me testando, assim como também o testo ao tocar algumas canção da época. Mas nunca me deu motivos para ter ódio, raiva ou aversão a ele. Não sei qual foi sua atuação durante a ditadura nos anos 60 e 70, mas já reconheceu em algumas ocasiões que houve muitos exageros por parte do exército. A vida me ensinou que nem tudo é “preto e branco”. Há tons de cinzas e nuances degradês. Meu vizinho, pelo que conta, nascido em família pobre do interior, só tinha duas opções na vida: ser padre ou milico. Tornou-se milico. Se tivesse seguido o caminho religioso, talvez fosse hoje um bom colega de ministério. Ou não?

Também tive paroquianos militares da reserva. Um deles, também coronel reformado, era homem extremamente sensível, daqueles que se emociona e chora durante o cântico de hinos ou em alguns momentos do sermão. Sempre solícito, prestativo e fiel à Igreja, também não gostava de falar de seus tempos de milico, e nunca reagiu negativamente aos sermões em que aproveitei para criticar o militarismo ou as forças armadas. Até mesmo participou de encenações amadoras da “Paixão de Cristo” na semana santa paroquial, mas no papel de “discípulo”, pois dizia não gostar de violência, e sempre que tocávamos em algum assunto referente ao golpe militar, ele dizia: “entendo o que o senhor fala, só espero que não esteja me dando indiretas, pois nunca concordei com certos exageros”.

Muitos militares que estavam na ativa nos anos 60 e 70 ainda estão por aí. Perigosos? Sinceramente, não sei, “o que andam suspirando pelas alcovas” (Chico Buarque). Em todo caso, acredito que qualquer pessoa armada – seja militar ou civil – sempre é um perigo. Nós, clérigos e sacerdotes, sempre tentamos nos equilibrar entre o ministério profético e a compaixão pastoral – e sempre a exercitamos diante de pessoas idosas e atormentadas por culpas e pelos fantasmas de seu passado. Também nos esforçamos para cumprir nossos votos de ordenação, que implicam em acompanhar pastoralmente todas as pessoas – ricas ou pobres, jovens ou idosas e, no contexto em que escrevo, incluiria “civis e militares” – até a hora de sua morte.

Tal compromisso, porém, não pode ser tomado como desculpa para silenciar nosso próprio clamor e solidariedade a muitas pessoas de mais idade (e seus familiares) que sofreram torturas,violências diversas e que foram afrontadas em seus direitos humanos mais básicos. Nosso reconhecimento e gratidão a eles, elas e a seus familiares mais próximos são impossíveis de ser traduzidos em palavras. Muitas vezes evitamos mencionar tais episódios em sua presença, pois sabemos que sua dor física e existencial é imensurável, como também nossa gratidão por sua bravura. A resistência deles e delas, entre outras coisas, serviu para amenizar os coices do golpe militar de 50 anos atrás, que poderiam ter nos machucado com uma intensidade bem mais traumática que as dores que ainda nos ferem.

Se alguma coisa há a ser comemorada 50 anos depois de 1964, não é o golpe, mas a resistência de muitos anivaldos, caetanos e leonildos, que ofereceram seus corpos em sacrifício para que os cassetetes, fuzis e tanques não nos assolassem. A eles e elas, minha sincera gratidão, e a certeza de que serão lembrados em ações de graças perante o altar na Semana Santa e no Domingo de Páscoa. Afinal, a tradição cristã nos lembra: “onde está, ó morte, a tua vitória?”. É tempo de agradecer e “esbanjar poesia” – não pelo golpe – mas por todas as pessoas que ofereceram resistência à morte e que, ressuscitados, continuam a nos encantar com suas histórias, ainda que seus corpos tragam as marcas da cruz.

Na semana santa de 2014, 50 anos depois de 1964, quando relembramos o julgamento injusto e desumano sofrido por Jesus Cristo, e a brutalidade militar e religiosa que o martirizou, é oportunidade de lembrar e agradecer pela resistência de muitos e de clamar para que o veneno desse cálice/cale-se amargo nunca mais se ofereça ao nosso povo.
Acabo de ouvir belo depoimento de Gilberto Gil em documentário, sobre a música “Cálice” (https://www.youtube.com/watch?v=8CnSiaP-jL4 ).

Recomendo aos interessados pela densidade emocional, política e existencial do testemunho e da canção, e silenciosamente, elevo minha oração:

“Pai, afasta de mim esse cálice!”

O cálice amargo do totalitarismo, da brutalidade e da violência

O “Cale-se!” dos silêncios impostos por gritos ou palavras-de-ordem;

Os cálices preparados em coquetéis militares

E em cerimônias religiosas

Cujos venenos já foram alquimizados nos bastidores

Senhor, tem piedade de nós.

Cristo, tem piedade de nós…

Tem misericórdia, Senhor, dos que ainda sofrem a dor do golpe

Certamente, é dor imensurável

Afinal, “médice” a dor ???????

Como beber dessa bebida amarga?

como beber o cálice da censura política, cultural e religiosa?

como beber o cálice do escravizante poder das corporações econômicas?

como engolir o cálice da invisibilidade imposta a a gays e lébicas?

como restaurar o cálice quebrado ou sem-nada dos pobres?

como beber o cálice envenenado das políticas indigenistas?

ou o cálice evangélico que demoniza as religiões afro-brasileiras?

como beber o cálice solitário da velhice desamparada?

ou o cálice sangrento da violência doméstica?

como conviver com o cálice imperdoável dos abusos sexuais às crianças?

Afasta, Pai….

“De muito gorda a porca já não anda…”

Não permita, Pai, que nossas instituições engordem…

torne-as leves e dançarinas…

não permita que a gordura paralisante

atrofie as instituições políticas

e acomode as instituições religiosas

sobretudo, essas, que deveriam ser ágeis e translúcidas

Não permita, Pai, que a gordura da soberba e da prosperidade

enriqueça e ensoberbeça as igrejas

torna-as mais pobres, cada vez mais pobres

para que sejam leves

Preserva nossa memória para sempre reafirmar

o que não queremos e não merecemos:

Esses cálices amargos

E o “cale-se” que nós mesmos interiorizamos

Kyrie… afasta de nós esse cálice!

Eleison imas!

(*) reverendo Carlos Eduardo Calvani, clérigo-missionário da Igreja Anglicana em Campo Grande (MS)

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