A cultura como mediadora em tempos difíceis
Vivemos um momento de importante mobilização nas ruas em todos os estados brasileiros, onde diferentes setores da sociedade se articularam contra a chamada PEC da Blindagem do Congresso Nacional. Foi uma demonstração viva de que a sociedade não está disposta a avalizar a impunidade generalizada, ao mesmo tempo que mostramos capacidade de união entre distintos matizes ideológicos.
Numa outra dimensão, podemos citar os megashows de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia, o que também refletiu o poder da cultura como catalisadora de momentos do coletivo.
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Esse fio de esperança nos apontou um sinal da potência do coletivo, tantas vezes menosprezado nos tempos de hoje, em que o indivíduo e o individualismo prevalecem na maior parte das discussões políticas e nas iniciativas implementadas na sociedade civil e no Congresso.
Outros dados alvissareiros, que podem ser brechas para abrir novos espaços e construir novas hegemonias, são os resultados de pesquisa recente realizada pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em que a cultura, nas suas diferentes manifestações artísticas e de lazer, aparece como importante fator na vida dos paulistanos. Também gostaria de destacar um dado do recém-divulgado estudo "Percepções sobre as desigualdades no Brasil", desenvolvido pelo Observatório Fundação Itaú, com o apoio técnico e a aplicação do Plano CDE e Datafolha: 81% das pessoas entrevistadas consideram a cultura como um vínculo fundamental na sua relação com a comunidade.
A cultura, como vários autores já apontaram, é fundante de diversas identidades, pluralidades, de um caminhar coletivo que molda valores e constrói sentidos. A cultura faz a mediação entre senso comum e saberes da oralidade, intelectuais, científicos, ancestrais e sensoriais, assegurando vínculos entre os sujeitos e as coletividades em diferentes dimensões.
A superficialidade das discussões contemporâneas parece ser um sintoma da pobreza de referências culturais, que traz como consequência uma baixa vinculação consigo mesmo, com o outro e com o entorno. Produz um vazio de encontros, de apreciação da beleza e de sentidos. Leopold Nosek fala da ausência de construção de narrativas e, ainda, de narrativas oníricas.
Narrativas, desde os tempos mais remotos, trazem aos seres humanos possibilidades de identificações, de organizar as incertezas, de apontar caminhos e dar um sentido à vida. Seu declínio deixa um enorme vazio. Há uma perda da capacidade de sonhar. E aqui lembro uma fala recente da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em que ela declara que o mais concreto da sua vida é sua capacidade de sonhar.
Durante toda a minha trajetória profissional, busquei o elo entre educação e cultura, expresso no que denominamos educação integral. Hoje, como presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta/TV Cultura, tenho mais possibilidades de debater esse tema e, em conjunto com a equipe da atual gestão, de buscar implementar iniciativas que traduzam esse diálogo da sociedade com a cultura e a educação como condição existencial. Nesse contexto, o território representa um papel fundamental, pois abriga as identidades locais e, ao mesmo tempo, é o espaço de todas as histórias do mundo. É lugar de implementação das políticas públicas, das manifestações de valores, costumes e comportamentos que conversam nos seus diferentes grupos e coletivos.
Édouard Glissant nos traz a ideia da poética da relação, em que o imaginário e a troca estão em relação constante. Em tempos tão desafiadores e conturbados, podemos encontrar nessas relações novos sentidos e possibilidades de estar no mundo.
(*) Maria Alice Setubal, doutora em psicologia da educação (PUC-SP), socióloga, presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal e presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta/TV Cultura, através da Folha de S.Paulo
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