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A tolerância a uma pandemia de frustrações

Chrystian Kroeff (*) | 09/04/2021 13:12

Ingressos desbotados na gaveta mostram uma data já superada, mas que nunca de fato existiu. Dia e horas que foram concebidos para abrigar um momento especial, mas o espetáculo foi cancelado, seguindo todas as outras medidas de contenção ao vírus que assola o planeta.

O valor afetivo desse pedaço de papel – que agora é lembrança do que não aconteceu – mudou radicalmente. De relíquia memorável a bilhete da tragédia. Quantos objetos da casa carregam o mesmo efeito? As residências se transformaram em pequenos museus de um mundo que é cada vez mais passado.

Junto a tantos itens que perderam o propósito, sonhos, expectativas e realizações também foram colocados nas gavetas. Isso sem mencionar os tantos entes queridos que se foram e que seguem falecendo, muitas vezes sem que suas famílias possam sequer se despedir. O que resta de possibilidades nesse cenário que não permite olhar para o amanhã?

A impossibilidade de realização de algo que se quer ou a perda do que se ama tende a gerar um sentimento desagradável e desolador. É o que se costuma chamar de frustração. É essa orquestra emocional complexa que se vive ao experimentar uma quebra de expectativa, uma impotência diante do imprevisível, uma impossibilidade de ter ou de ser aquilo que se deseja. O excesso, e não somente a falta, também frustra. Realidade, vale dizer, mais comum para as mulheres que acumularam compromissos de trabalho e de cuidado com a casa e com a família – ao mesmo tempo, no mesmo local.

Sabe-se que frustrações não são de todo mal. Embora usualmente dolorosas para quem as vive, têm sua função ao longo do desenvolvimento dos indivíduos. Deparar-se com uma negativa faz parte do importante processo de conceber a existência de algo para além do próprio corpo e da própria mente. Em termos subjetivos, desde cedo se colhem benefícios com doses moderadas desse rompimento de expectativa. Um bebê, por exemplo, começa a ter noção de espaço e de tempo ao precisar esperar pelo alimento alguns instantes depois do início da fome.

Embora seja possível pensar em diversos exemplos em que a frustração é benéfica, e até mesmo necessária, há também situações em que ultrapassa as capacidades do sujeito de usufruir determinada experiência. Isto é, algumas distâncias entre desejo e realidade alargam tanto que estiram as possibilidades de manejá-las de forma adaptativa. É provável, além disso, que tais capacidades variem para cada pessoa, as quais apresentam múltiplos níveis do que se entende como tolerância à frustração.

Nem todos reagem da mesma forma em cenários semelhantes. A pandemia de covid-19 escancarou as variadas formas de as pessoas reagirem à frustração. Talvez o mais desolador – embora nem tão surpreendente – seja testemunhar familiares, conhecidos e amigos que decidiram negar a necessidade de lidar com suas frustrações. São esses que seguem frequentando locais de aglomeração sem máscara. E mais: publicizando seus passeios nas redes sociais, insistindo em uma suposta normalidade.

A questão que ecoa diante desse cenário, e que cabe dentro da presente discussão, é a seguinte: essas pessoas estão tolerando suas frustrações? A concepção de tolerância remete a diferentes significados.

Um deles pode direcionar a uma postura passiva de suportar. É comum pensar nesse sentido ao falar de tolerância à frustração. A quebra de expectativa e a não realização de desejos podem ser intensas e seguirem acumulando-se, mas quem tolera suporta e segue aguentando – seja por capacidade, seja por impossibilidade de escolha.

Outro significado leva a um caminho quase oposto ao anterior: tolerar é também resistir, responder. Aqui, abre-se a possibilidade de um enfrentamento ativo frente às restrições que travam as expectativas e as necessidades de cada um. Nesse sentido, pode-se dizer que aqueles com boa tolerância à frustração são capazes de responder a ela de maneira ativa e adaptativa. Não se trata de afirmar que tolerar cabe exclusivamente ao indivíduo e que aqueles que sucumbem foram fracos e incapazes, mas, sim, que há maneiras de se propor enfrentamentos. É claro que há situações de extrema frustração, algumas que ameaçam até a capacidade de sobrevivência. É necessário apostar, contudo, na criação de perspectivas, de caminhos possíveis para lidar com as frustrações – tão presentes ao longo desse último ano.

Por outro lado, uma baixa tolerância à frustração tende a significar respostas de estagnação, de adoecimento físico e mental, de estresse elevado ou de negação – estratégia que tem aparecido na pandemia. Na tentativa de responder à questão feita anteriormente, pode-se pensar que seguir frequentando bares e boates e que não abrir mão de desejos e de prazeres que coloquem em risco a vida de outras pessoas (e da sua própria, importante lembrar) é uma forma elaborada de negar a realidade. É possível, portanto, compreender que esse comportamento é uma expressão da baixa capacidade de tolerar as frustrações impostas pela pandemia – aliada, claro, a outros fatores, como a presença de valores mais individualistas e como o incentivo de atores do poder público para desdenhar da situação. O resultado dessa estratégia, assim, é lidar com as imposições, negando-as. É como dizer: “Se posso não abrir mão de meus desejos imediatos, escolho não me frustrar – independentemente das consequências”.

Negar a necessidade de adiar ou de suspender a própria satisfação começa a ser bastante prejudicial na medida em que não configura uma “resistência” ativa e adaptativa à frustração. Pelo contrário: não se está reconhecendo a perda, a restrição, mas, sim, agindo como se não estivessem presentes. O resultado é que, no cenário amplo, seguir aglomerando e, por conseguinte, favorecer a circulação do vírus contribui para o colapso do sistema de saúde do país. Isso tudo aliado à falta de políticas públicas que garantam mais possibilidades de distanciamento daqueles que precisam circular pelas cidades a fim de manter a renda. Como desfecho, tem-se um agravamento de todo cenário que produz as frustrações. Uma verdadeira pandemia de impossibilidades e de excessos com os quais é difícil lidar. Paradoxalmente, negar a gravidade da pandemia não reduz a frustração nem individual nem coletivamente. Gera, pelo contrário, um aumento significativo de perdas, restrições e da necessidade de maiores cuidados e medidas sanitárias.

No limite, todos aqueles que estão sofrendo de estagnação e de adoecimento físico e mental terão seus quadros agravados. Além disso, é plausível pensar que a “régua” da tolerância à frustração desliza para baixo a cada dia que passa sem uma perspectiva de melhora. Isto é, tolerar frustrações não diz respeito a uma característica rígida de personalidade, mas a capacidades e habilidades que podem ser muito afetadas pelo contexto. De maneira significativa, a tolerância de cada um que decide – ou que precisa – encarar a pandemia vai sendo afetada conforme as frustrações e as ameaças seguem inflando.

Diante de tal cenário, outra questão se faz presente: de que maneira se pode enfrentar a frustração? Isto é, há como se desenvolver uma maior tolerância a cenários adversos?

Uma forma mais adaptativa de lidar com as frustrações pode passar por um movimento ativo de criação – em um sentido amplo. Eis o desafio diante de um cenário tão difícil como o da pandemia: encontrar, dentro da subjetividade de cada um, qual a possibilidade de criação para o enfrentamento das frustrações.

A descoberta de um tempo para buscar um alívio nesse cenário tão frustrante pode aparecer em variados contextos: de hobbies a ofícios artísticos, de inovações espontâneas às induzidas, de atividades de lazer ao compromisso do trabalho. É importante ter o cuidado, especialmente nos casos da frustração pelo excesso de afazeres obrigatórios, de não acrescentar mais sobrecarga na agenda. Por fim, é também da criação de espaços sociais de troca e de apoio mútuo que milhões de pessoas seguem criando todos os dias e, assim, conseguindo tolerar um pouco mais enquanto cuidam de si e dos outros.

Não é tarefa fácil, e há momentos de colapsos e de desabamentos. Há dias de dizer: “Eu não aguento mais”. O que faz lembrar: tolerar é também contar com o outro para ouvir a exaustão. Tolerar é também escutar a fragilidade, e estar ativamente presente. Tolerar é exercer autocuidado e cuidado coletivo. Do contrário, tolerar pode se tornar somente espera. Somente o silêncio de um espetáculo que nunca pôde acontecer.


(*) Chrystian Kroeff é psicólogo, psicoterapeuta, doutorando no PPG em Psicologia da UFRGS e professor universitário.

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