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Carnaval: festa utópica e pagã

Por Angélica Madeira (*) | 06/03/2011 10:47

O carnaval é uma festa de origens muito remotas. Embora muitas pessoas pensem que ele surgiu no Brasil – que aliás ganhou o título de "país do carnaval" – as festividades presididas pelo Rei Momo deitam suas raízes na Antiguidade Clássica. Desde os rituais dedicados a Dionísio, o deus grego da embriaguez e da música, até os desfiles das Escolas de Samba, muitas águas rolaram e a festa, em seu sentido mais universal, encontra numerosas formas de se manter ao longo da história, sempre transformada pelas diferentes sociedades, pelas diferentes culturas.

As Saturnais romanas – festas em homenagem a Saturno, deus dos melancólicos, do desejo em excesso, da licenciosidade – são as referências mais próximas das comemorações que, a partir da Idade Média, passaram a ocorrer em vários pontos da Europa, em Itália, França, Alemanha, sem esquecer, é claro, a Península Ibérica, particularmente Lisboa, de onde vem mais diretamente nosso Carnaval. Dedicado ao culto da carne, da comida, da bebida e do sexo, antecedendo a Quaresma - quarenta dias nos quais se guarda o jejum e a abstinência – o carnaval passa a ter como baliza o calendário cristão, em um ciclo de festas móveis, definidas pelo equinócio.

Tendo como pano de fundo uma sociedade hierárquica, dominada por dogmas e pelo sentimento de culpa, essas formas populares de festas se expandem e desenvolvem uma linguagem própria feita de gestos obscenos, de símbolos concretos e sensíveis, um vocabulário de injúrias e sarcasmos, instaurando, por um tempo muito delimitado, um reinado utópico em que tudo está pelo avesso: hora de profanar o que é sagrado; a autoridade se torna objeto de riso; as proibições estão suspensas; as leis e hierarquias são abolidas; instala-se o reino da fantasia. Com o recurso das máscaras e adereços, homens vestem-se de mulher, velhos de criança, servos de rei. Tudo é objeto de riso, riso contagiante que envolve na mesma euforia todos os que estão na rua, participando de uma mesma existência carnavalesca.

Não se pode ver ou assistir o carnaval. Não há algo como no teatro separando atores e público. É uma festa sem rampa que açambarca em seu raio tudo o que encontra pela frente e instala, pelo jogo e pela brincadeira, um espaço de igualdade e de magia. Em um tempo sempre limitado, é possível romper com as proibições e leis, reverter a seriedade do mundo, criar um contraponto à sufocante religiosidade e às formas de dominação vigentes. São festas urbanas que promovem a efervescência coletiva e permitem equilibrar tensões sociais e psíquicas. O Carnaval, atrelado ao ciclo de festas do cristianismo, fica em uma situação paradoxal, pelo fato de ser e permanecer sendo uma festa pagã definida pelo calendário cristão.

A Renascença conhece um ápice desses festivais, quando ganham forma em Roma, Veneza e Nápoles, Nice e Lyon, Bonn e Nuremberg, os grandes carnavais com fantasias valiosas, máscaras elaboradas, cortejos e corsos, já então organizados pela aristocracia. Desde então, ele regride na Europa, enquanto festa popular que fora ao longo oito séculos, para se refugiar nos salões, nas fantasias e mascarades suntuosas, mantendo-se apenas em algumas cidades e recantos escondidos.

No Brasil, o Carnaval segue rumo próprio. Trazido pelos portugueses, entra na Colônia como festa de rua, em sua versão mais popular, a do Entrudo, que consistia basicamente em uma brincadeira de lançar bombas de água, de farinha, fuligem, alvaiade, gemas de ovos, costume considerado rústico, primitivo e logo substituído por laranjinhas e águas de limão, precursoras dos lança-perfumes de tempos mais modernos.

A partir de meados do século XIX, por volta de 1850, começam a surgir o préstitos, desfiles de carros alegóricos das grandes Sociedades, juntamente com as agremiações, mantidas pelas classes abastadas. Surgem também os ranchos que podem ser considerados como os precursores das Escolas de Samba, por já incluírem orquestra tocando marchas, os estandartes, o Abre-alas, a comissão de frente, além de outras alas de brincantes fantasiados.

Apesar de apropriada pela elite e mesmo pelas cortes, a Festa nunca perde força entre as classes populares que comemoram seu pequeno carnaval, já então marcado pelos tambores africanos que dão um sotaque diferente aos diversos carnavais do Brasil, na Bahia, o afoxé, em Pernambuco, o maracatu, no Rio de Janeiro, o maxixe e o samba que se espalham pelos morros em torno da Praça Mauá e da Praça XI de onde saem os blocos de rua, os blocos sujos e seus personagens folclóricos.

Na década de 20 do século passado começam a surgir as primeiras Escolas de Samba, das quais a “Deixa falar”, no bairro do Estácio, é considerada a mais antiga. Nos anos seguintes, não só o samba se torna o ritmo da identidade da nação como o carnaval é elevado à categoria de festa da brasilidade. Neste momento de grande pendor nacionalista, início do governo de Getulio Vargas, acontece o primeiro desfile organizado das Escolas, por iniciativa do jornalista Mário Filho, em 1932. Desde então a tradição se instala – nunca mais esses desfiles deixam de acontecer - e as inovações apenas reforçam a imaginação dos foliões. Em 1934, o rei Momo – rei para rir – passa a ser um personagem e não mais um boneco de papelão como fora até então. Em 1935, as Escolas se tornam oficiais e vive-se uma espécie de período áureo das marchinhas que constituem até hoje o repertório do carnaval de rua. Os sambas-enredo só viriam muito mais tarde, com o Quilombo dos Palmares, defendido pelo Salgueiro, em 1960.

De lá para cá, muita coisa mudou. A criação da Embratur (1966) institucionalizou o Carnaval, incluindo-o como a festa mais importante do calendário turístico, voltado, desde 2003, para o público estrangeiro, tornando o Carnaval quase inacessível aos brasileiros. Com a inauguração do sambódromo, a Passarela do Samba, em 1984, onde acontecem os desfiles e a competição entre as Escolas, instalou-se um estilo de carnaval que não entusiasmava muito os jovens que, no entanto, queriam Carnaval.

Daí a surpresa de ver ressurgir, pipocando por todos os bairros, praças e esquinas, os blocos de rua, blocos livres, abertos à participação, em que os foliões pulam fantasiados atrás de uma banda – em geral metais, bumbos, tambores e taróis – cantando as marchas clássicas e inesquecíveis dos carnavais dos velhos tempos - Você pensa que cachaça é água?, Mamãe eu quero, Sassaricando, Oh Seu Romeu! - mesclando-as a novos ritmos e versos, atualizando essa poética do riso, trazendo-a para o seu próprio tempo.

(*) Maria Angelica Brasil Gonçalves Madeira é professsora do Departamento de Sociologia, da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco. Possui graduação em Português Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Letras Modernas pela Universite de Paris VIII, doutorado em Ciências dos Textos e Documentos Literatura Compa pela Universite de Paris VII - Universite Denis Diderot, pós-doutorado pela Universidade de Lisboa e pela Columbia University. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Cultura. Atua principalmente nos seguintes temas: Cultura Popular e Literatura Oral.

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