Como se manipulam notícias que causam ódio?
Um trágico exemplo de propagação de notícias falsas ocorreu na Rússia czarista quando se divulgou um documento chamado Os Protocolos dos Sábios de Sião, atribuindo aos judeus todos os problemas econômicos e políticos do império. A população judaica indefesa foi perseguida, aldeias destruídas, massacradas.
O nazismo seguiu o mesmo receituário, considerando judeus, comunistas, negros, ciganos, inimigos da nação. No governo de Getúlio, o Plano Cohen foi elaborado por militares visando prender, expulsar e matar comunistas, judeus e anarquistas, justificando a suspensão dos direitos constitucionais. Como se vê, é possível manipular fatos e provocar um clima de ódio, perseguição e morte até que a verdade reapareça.
Esse prelúdio me ocorre ao analisar notícias relativas aos votos do Supremo Tribunal Federal, no julgamento que condenou o ex-presidente da República e vários ministros militares pela tentativa de golpe contra as corretas eleições que elegeram Lula. Foram quatro votos confirmando a condenação de Bolsonaro. O voto destoante, do ministro Luiz Fux, foi analisado por vários ângulos, mas a abordagem do texto Xadrez do voto de Fux e o avanço do sionismo, por Luís Nassif, chamou minha atenção. O jornalista “explica” que as razões do voto do ministro Luiz Fux devem ser “compreendidas como uma confluência de fatores históricos, familiares, políticos e ideológicos”. Segundo o texto, o ministro tem “raízes e formação comunitária”, isto é, “desde cedo esteve ligado à cultura judaica, estudando em colégios onde se cantava o hino de Israel e participando de cerimônias comunitárias”.
Curiosamente, em sua biografia, Fux conta que estudou apenas o primário no centenário Colégio Liessin e prosseguiu os estudos em escolas públicas, inclusive a universidade, que frequentou à noite, pois começou a trabalhar aos 14 anos. O Colégio Liessin tem uma base judaica, como outros colégios têm base católica, protestante etc.
Ao descrever a personalidade do ministro, o jornalista informa que ele é “descendente de judeus romenos refugiados do nazismo” e explica, mais adiante, que Fux se liga ao grupo bessarabiano. Embora haja uma confusão com o país Romênia, no qual uma região é a Bessarábia (hoje parte da Moldávia e da Ucrânia), essa referência, para o autor, explica a aderência política de Fux à família Zveiter (originários da Bessarábia), “uma das mais influentes no Judiciário fluminense e também originária do grupo bessarabiano de Niterói”. Em síntese, a origem do voto do ministro e suas articulações decorrem da origem “geográfica” de seus antecedentes.
Tem-se a impressão, ao ler o texto, que a família Fux sempre foi economicamente muito bem situada, pois não há a informação de que seus avós maternos viviam modestamente como vendedores. Que uma de suas avós se dedicou a atividades bastante comuns entre judeus imigrantes, ao apoiar lares para crianças cujos pais trabalhavam o dia todo, e que seu avô cuidou de um lar para velhos.
Afinal, independente de ser brasileiro, filho de imigrantes italianos, japoneses, árabes, como essas relações identitárias interferem sobre o exercício político? E por que é importante buscar a origem judaica de um ministro para explicar seu voto?
Poderia me alongar no distorcido retrato do ministro, pois o texto ignora o discutível teor substantivo do discurso proferido, interessado apenas na sua condição de judeu e de supostas articulações decorrentes dessa origem.
Nesse momento tão conturbado da vida brasileira, quando o antissemitismo retorna exacerbado, é espantoso ver na imprensa textos que procurem a origem judaica do voto de um ministro do Supremo Tribunal Federal.
(*) Por Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
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