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Memórias e reflexões no segundo turno nas eleições de 2014

Por Jorge Eremites de Oliveira (*) | 10/10/2014 14:11

“Chora burguesia, burguesia chora, chora burguesia que chegou a sua hora”. Este ingênuo bordão foi entoado por um colega paraense para cantarmos na Avenida Marechal Rondon, em Corumbá, Mato Grosso do Sul, durante as comemorações pela ida da candidatura Lula ao segundo turno das eleições presidenciais de 1989. Era quase que uma batalha entre Davi e Golias. Lula e aliados enfrentaram o Collor de Mello, a Rede Globo, a Miriam Cordeiro e outros adversários. Todavia, a canção que mobilizava milhões era outra: “Lula lá, brilha uma estrela. Lula lá, cresce a esperança. Lula lá, o Brasil criança. Na alegria de se abraçar...”. Éramos jovens, recém saídos da adolescência, alguns na Universidade, e sonhávamos com um país melhor após mais de vinte anos de ditadura militar (1964-1985). Fazia um ano desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, uma importante conquista do povo brasileiro.

Em 1992, quando morava em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, e estava centrado no curso de mestrado em História/Arqueologia que fazia na PUCRS, ocorreu o impeachment do então presidente Collor. Após ser deposto e ficar inelegível por anos, o “Caçador de Marajás” voltou ao cenário político nacional e foi eleito ao Senado Federal. Atualmente está reeleito e paradoxalmente é um importante aliado do governo Dilma. Em seu lugar ficou Itamar Franco, o presidente que lançou o Plano Real de que tanto o PSDB quer ser “pai”. Seu governo foi curto, mas pôs fim a uma hiperinflação, cujo sabor amarguíssimo marcou drasticamente as gerações da época, e ainda conseguiu eleger seu sucessor.

Anos depois, em 1994, quando morava em Porto Alegre, assim gritávamos nas proximidades do Parque da Redenção durante o segundo turno das eleições para governador: “Cavalo do comissário, o povo não é otário!” Exibíamos ainda cartazes dizendo “Prato do Dia: caBritto frito no óleo de Olívio”. Lula havia sido derrotado por FHC e terminamos por perder as eleições no estado com um dos melhores quadros do PT na época: Olívio Dutra.

Pois bem, fomos derrotados naqueles pleitos, mas saíamos de cabeça erguida, fortalecidos e motivados para as próximas batalhas eleitorais. Anos depois, em 1998, já morando em Dourados, vibrávamos na Avenida Marcelino Pires com a eleição do Zeca do PT ao governo de Mato Grosso do Sul. Abraçávamos uns aos outros na rua e muitos choravam de alegria. Elegemos ainda dois candidatos negros para a Câmara Federal. Dois anos depois, em 2000, novamente na Marcelino Pires festejávamos a eleição de Laerte Tetila à prefeitura de Dourados, a segunda maior cidade do estado. Havia trabalhado, e muito, em seu programa de governo, juntamente com o saudoso Renato Gomes Nogueira, e também coordenado a vitoriosa campanha de um colega de trabalho rumo à Câmara Municipal, Wilson Biasotto.

Quase todos os astros estavam alinhados. Faltava ainda vencer as eleições presidenciais. Dito e feito: em 2002, depois de três derrotas consecutivas, finalmente o Lula foi eleito e, em janeiro de 2003, tomou posse em Brasília, quando houve uma grande festa da democracia. Estava lá e vi tudo de perto. Fiquei emocionado ao testemunhar um ex-operário chegar à presidência do país após tantos regimes de exceção. Fomos de carro e levamos meu filho mais velho para participar daquele momento histórico. Durante a viagem encontramos militantes de todo o país, inclusive pessoas que viajaram dias para participar da posse do novo presidente. Até FHC ficou emocionado ao colocar a faixa de presidente da república no Lula.

Toda aquela alegria e motivação não existem mais, ao menos não naquela proporção, conforme tenho percebido na cidade de Pelotas, onde resido hoje em dia, e por tantas outras cidades brasileiras por onde passei este ano. Não se trata, aqui, de fazer saudosismo político sobre o passado, mas de registrar fragmentos de memória e fazer uma avaliação sobre a política no Brasil. Tampouco tenho gosto por ideias conservadoras e pseudoproféticas: “Ah, o PT nunca me enganou!” ou “Sempre soube que o Lula e seu partido não valiam nada e só queriam enganar o povo!”.

Quem diz isso para as eleições de 1989 é porque estava entrincheirado do lado oposto em relação ao dos que lutavam contra a ditadura ou, na melhor das hipóteses, ficava deitado em berço esplêndido e conservador esperando por dias melhores.

Desde os anos 1980, portanto, acompanhei de perto a trajetória do PT, ora como militante e filiado, ora como alguém que se afastou do partido por discordar das escolhas feitas no poder e para nele se manter e se locupletar, embora ainda esteja observando-o a certa distância. Nunca almejei cargo algum nos governos petistas e fiz a escolha de seguir focado em minha carreira profissional. Cheguei a ser perseguido por pessoas da legenda que no poder tentaram tolher minhas ideias e meus ideais acadêmicos, algo que denunciei publicamente quando trabalhava em uma instituição que ajudei a criar e implantar em meu estado natal. Mesmo assim, no PT tenho vários amigos dos velhos tempos, e também nos partidos inicialmente constituídos por dissidentes, como no PSTU e no PSOL. Até mesmo no PMDB e em outras legendas tenho pessoas que considero e respeito. O fato é que me percebo, pois, como alguém que conhece o Partido dos Trabalhadores e não me considero, bem entendido, um anti-PT, tampouco tenho interesse em ser filiado a este ou a outro partido. Manter minha liberdade de pensamento crítico não combina mais com filiação partidária.

Dessa experiência particular resulta a avaliação de que, qualquer que seja o resultado deste segundo turno das eleições presidenciais, o PT será o maior derrotado do ponto de vista político. Isso porque comete desvios de conduta aqui e acolá e faz uma campanha pouco inteligente e antiética contra seus adversários nas redes sociais. Ofende, por exemplo, eleitores que no primeiro turno votaram em nomes fora da polarização binária que mantém com o PSDB. Ao fazer isso, como ocorre com a candidata do PSB e o candidato do PV, estimula milhares de eleitores a votar na oposição retrógrada representada pela candidatura de Aécio Neves. Deixou-se levar pela disputa do poder pelo poder, o que grosso modo se deu gradualmente desde a segunda metade da década de 1990, quando a tendência do Lula apoderou-se de vez do partido. Também está envolvido em esquemas de corrupção, igualando-se a antigos adversários (muitos dos quais se tornaram aliados de ocasião). Ademais, quando se fala em corrupção, saber se oficialmente roubou mais ou menos pouco importa. O fato é que roubou e ainda protege corruptos, algo que não minimiza o desvio de conduta; tampouco devemos omitir o fato de que outros criminosos fizeram o mesmo ou mais nos tempos do governo FHC. Por isso, aliás, tenho dito que ambos os partidos mostram-se bastante semelhantes sob certos aspectos. Em tese o PT teria a marca da inclusão social em seus governos, ao passo que o PSDB estaria mais voltado para o desenvolvimento econômico. Esta é uma avaliação rasa dos dois partidos. Ocorre que ambos também têm práticas em comum: aliança com o PMDB e com setores conservadores (ruralistas, religiosos fundamentalistas, empresários corruptos etc.) e nutrem o gosto por se locupletar e perpetuar no poder (mensalões, privataria tucana, Petrobras, caixas-dois, escândalo SIVAM, violação de direitos humanos, mordomias etc.). Soma-se a isso a incapacidade de promoverem as reformas de que o Brasil precisa, especialmente a político-partidária, e o distanciamento em relação aos movimentos sociais e etnicossociais autônomos. Quando deles se aproximam é para cooptá-los para o projeto hegemônico de poder, aliciando lideranças com cargos comissionados etc.

Se tivesse escolhido trilhar por outros caminhos, o das pedras, sem abrir mão de princípios éticos e opondo-se a alianças de todo tipo, teria sido mais difícil chegar ao poder (lembre-se que Nelson Mandela permaneceu na prisão por 27 anos e depois de reconquistar a liberdade foi eleito presidente da África do Sul e soube conduzir seu país para um futuro melhor). Contudo, o PT escolheu chegar ao poder por caminhos mais curtos e para isso também pratica a nefasta compra de votos em todo o território nacional. Apesar disso tudo, não se pode ignorar certos avanços do governo liderado pelo PT, como, por exemplo, os programas de inclusão social, a criação de novas instituições federais de ensino superior, a diminuição da miséria etc. Mas nem tudo é tão simples assim e a Dilma não é o Lula, tampouco ele é quem foi anteriormente (ou pensávamos ser): o mito do operário salvador da pátria. Por isso uma parte da população quer mais de quem estiver no governo central: descriminalização do aborto, criminalização da homofobia, regularização das terras indígenas e quilombolas, mais crescimento econômico com maior inclusão social, radicalização na transparência e combate à corrupção, melhoria no transporte público, maior segurança pública e combate à violência, educação formal em tempo integral, saúde de qualidade e acessível a todos, fim da reeleição etc.

Esta minoria pode ter um peso considerável em uma disputa acirrada neste segundo turno das eleições presidenciais.
Como o PT não consegue e não quer fazer uma autocrítica, e já implodiu a democracia interna que havia antes na legenda, apresenta-se como o maior derrotado nestas eleições, sobretudo pelos flancos que abriu para o retrocesso do PSDB. Sim, Dilma e aliados estão entre os maiores cabos-eleitorais da candidatura de Aécio Neves. Mesmo que vençam as eleições presidenciais, serão os maiores derrotados do ponto de vista da política defendida por pessoas que pensam de maneira semelhante a mim. Agora é votar nulo, o que para muitos significa estar disposto a lutar por direitos em qualquer cenário, ou votar pela continuidade do que está aí, como que votar no “mais do mesmo”. O receio que tenho é que dias piores estão por vir, sobretudo para classes sociais, povos originários e comunidades tradicionais em situação de vulnerabilidade social. O maior risco disso é eleição de Aécio Neves, quem sequer contou com o apoio da maioria de seus conterrâneos no primeiro turno em Minas Gerais, onde foi governador. Quem o conhece, e também ao PSDB, sabe que ele e seu partido não merecem muita credibilidade. Mas votar em Dilma também não significa tantos avanços como alguns alardeiam nas redes sociais, sobretudo se a economia do país entrar, de fato, em recessão.

Então, para quem mantém a posição de independência política e crítica em relação ao que aí está na política brasileira, ficamos diante de uma máxima mais ou menos assim: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Ainda que alguns façam voto útil e crítico na Dilma, temos que estar prontos para enfrentar decepções e a máquina do Estado de moer gente. Também há que considerar que o próximo Congresso Nacional será ainda mais conservador comparado ao que está aí. Ou seja, vamos de mal a pior no parlamento e no governo, e não raramente chocamos ovos de serpente. Por outro lado, também é ingênuo pensar que participar dessas eleições é um grande exercício da cidadania e que apenas votar resolverá muita coisa em um sistema viciado como o nosso. Saber lutar por direitos com a cabeça e o coração é o mais importante. Para isso é que precisamos saber de onde viemos, quem somos, para onde desejamos ir e ao lado de quem devemos andar. Aprender mais e mais é um passo importante, pois, como diz o poema de Bertold Bretch: “Você tem que assumir o comando”.

(*) Jorge Eremites de Oliveira, graduado em História pela UFMS, mestre e doutor em História/Arqueologia pela PUCRS e professor da Universidade Federal de Pelotas.

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