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Nem crime nem castigo

Por Paulo Cabral (*) | 12/06/2015 14:04

Para Bourdieu e Passeron o ato pedagógico carrega um componente de violência que lhe é intrinseco. No passado, podia assumir dimensões físicas como castigos corporais, palmatória, joelho no milho ou simbólicas, como orelhas de burro colocadas na cabeça de crianças com dificuldade de aprendizagem, a triagem em turmas fortes e fracas, estigmatização em diferentes âmbitos da vida escolar e por aí afora.

Hoje não se admite violência física, porém, a simbólica é inerente à educação. E por que? Pelo simples fato de que o educador tem o domínio do processo em suas mãos. Ninguém educa para nada, a educação não acontece no éter, ela tem sempre um propósito, e essa finalidade é de pleno conhecimento do educador, mas não do educando.

O educador conduz e o educando é conduzido para alcançar aquele objetivo pré-estabelecido. Essa simples, porém determinante, circunstância é suficiente para definir a assimetria de posições e de poder no processo pedagógico, derivando desta determinação a violência intrinseca ao ato de educar.


De outra parte, a escola reproduz o macrocosmo social, ou seja, nela repercutem e se desdobram todas as virtudes e vícios do universo em que se insere. Ela recepciona também o repertório de princípios, valores, normas e costumes dos grupos com os quais se articula. Se todas as sociedades tem sistema de normas e sanções, a escola também se vale desse aparato.

As sanções podem ser aprovativas e reprovativas. As primeiras servem para reforçar determinado comportamento socialmente valorizado, já as outras para desestimular condutas consideradas indesejáveis. Elas podem ser formais, isto é, estarem previstas em códigos escritos ou informais, quando se fundam no costume. Sejam quais forem, estão presentes no cotidiano das pessoas desde a idade mais tenra até a morte.


Logo, quando a escola se utiliza de um sistema de sanções, nada mais faz do que reproduzir, em seu âmbito, aquilo que circula na sociedade. E aí, tem-se um aspecto crucial do trabalho docente contemporâneo. Devemos sempre só oferecer reforços positivos? Estamos impedidos de usar as sanções reprovativas? Por estarmos lidando com pessoas em formação, essa formação não admite ressalvas ou questionamentos ao desempenho apresentado?

Desconheço os pormenores da situação objeto da matéria “Filho fica de castigo na escola e mãe se revolta com o método do tempo do onça” (Campo Grande News, 11/06), contudo, entendo que disciplina e responsabilidade devam ser preocupação dos educadores, sejam pais, professores ou qualquer outro agente incumbido de formar uma criança ou jovem. Ao propor o tema da redação “o que pretendo sendo tão irresponsável”, a professora induz o menino a refletir sobre a sua conduta em relação ao dever de casa.

Aqui cabem algumas indagações: 1ª) foi a primeira vez que as tarefas deixaram de ser integralmente cumpridas? 2ª) a carga de tarefas é desproporcional à possibilidade da criança? 3ª) aconteceu algum evento anterior entre a professora e o educando? 4ª) As instâncias de gestão pedagógica da escola foram acionadas pela mãe? 5ª) Em caso positivo, quais as respostas obtidas?


O tema é muito complexo e envolve aspectos de ordem objetiva (a redação passada pela professora) e de ordem subjetiva (a forma como a família interpretou a tarefa) entendendo-a como “um castigo do tempo do onça”. Casos como esse acabam por comprometer a já combalida autoridade da escola e dos profissionais da educação, fornecendo um poderoso álibi para a omissão de muitos “educadores” que, diante de situações como essa, justificam a sua conduta protocolar e burocrática sem qualquer compromisso com a infância e juventude que deveriam ajudar a formar.

A educação é um fenômeno com determinação multifatorial, passível de se realizar sob distintas vertentes, de extraordinária e fascinante complexidade. Os métodos nada mais são do que um conjunto de meios articulados para se realizar determinado fim; não são um produto “fashion”, sujeito a modismos, do“tempo do onça” ou do “dernier cri”.
É tempo de refletirmos sobre o muito que temos deixado de fazer para elevar a qualidade da educação brasileira, pública e privada, dotando-a de sentido, para promover a autonomia e o aprimoramento das pessoas.

(*) Paulo Cabral é sociólogo e professor.

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