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O judiciário não cria leitos

Ellen Priscile Xandu Kaster Franco (*) | 15/04/2021 16:35

O Coronavírus já tinha matado mais de 355 mil pessoas nesta pandemia somente no Brasil no dia 12 de abril agora, quando meu pai foi internado em um hospital de Curitiba, com Covid. Eu, em Mato Grosso do Sul,  uma filha nessa situação impotente. Ele, inúmeros quilômetros longe de mim, isolado.

Com a informação inicial de que já estaria com 50% dos pulmões comprometidos, meu pai teve a sorte de encontrar leito disponível naquela unidade de saúde na Capital paranaense, que fizera 20 dias de lockdown pouco antes. Foi imediatamente submetido a exames e colocado no oxigênio. Foi medicado, passou a dormir melhor, na paz de quem sabia que a esposa, idosa, também com Covid, mas quase sem sintomas, poderia dedicar-se à própria recuperação em casa.

Se voltarmos um pouco antes, em meados de março, foram contabilizados números alarmantes na pandemia. Níveis insustentáveis de lotação em hospitais, inclusive em UTI’s, com aumento na curva de contaminação e morte. Imaginemos que meu pai tivesse dado entrada no mesmo hospital dias antes das providências, naquele município, para contenção dos altíssimos níveis de contaminação e taxas de ocupação de leitos. Teria encontrado vaga? Teria recebido os cuidados e tratamentos médicos necessários em tempo? Estaríamos tranquilos e confiantes em sua recuperação?

No momento das maiores ameaças ou lesões a direitos, o Poder Judiciário pode vir a ser chamado a agir. Mas, é salutar lembrar que juízes e juízas não criam vagas hospitalares, nem leitos de UTI, por meio de suas decisões. Cabe ao legislativo a indicação das prioridades da sociedade por meio das leis. O governo tem a responsabilidade sobre a administração pública e gestão de recursos, que são escassos, tendo em conta as necessidades sociais, que são ilimitadas. E a boa gestão de recursos é feita mediante planejamento prévio, de forma global, com transparência e prestação de contas à população. O trabalho independente e harmônico entre os poderes, cada qual no exercício de seu mister fundamental, é o que garante às pessoas seus direitos.

Temos vivido cada vez mais proximamente o risco de perda de parentes e amigos. Cada um de nós é diretamente responsável pela vida e integridade do outro. Por respeito às milhares de famílias enlutadas, aos valorosos profissionais que encaram diariamente a linha de frente para enfrentamento do vírus, aos pequenos empresários que tiveram de fechar seus negócios, aos trabalhadores que perderam seus empregos, a todas as pessoas que hoje passam fome, cuidemos uns dos outros.

Assim que tomei consciência do risco real que meu pai sofria, da finitude da vida, lembrei-me de uma carta que ele me escrevera há 18 anos. Encontrei-a guardada no meu pequeno baú de coisas preciosas. Nela, ele expressava todo seu amor e orgulho da filha que acabara de ser admitida na prova da OAB. E deixara explícita também a “certeza” - palavras dele - de que eu atingiria meu objetivo profissional: a magistratura.

Eu, como juíza, não conseguiria criar vaga de hospital ou leito de UTI para ninguém sem preterir qualquer outra pessoa em uma fila, que é controlada pela administração pública. Hoje, estou certa de que a vida de meu pai terá sido salva desta vez não pela justiça, mas pela vacina, pelo acesso imediato a tratamento hospitalar para controle dos sintomas da Covid e comorbidades e, claro, pelo amor.

Ellen Priscile Xandu Kaster Franco - juíza titular da 1ª vara cível de Nova Andradina e secretária geral adjunta da AMAMSUL

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