Sem controle nas fronteiras, o Brasil seguirá perdendo a guerra ao crime
O Brasil parece viver eternamente a mesma crise de segurança pública: operações grandiosas, trocas de comando, promessas de endurecimento penal e discursos inflamados que desaparecem tão rápido quanto surgem. Nada disso tem sido suficiente para conter o avanço do crime organizado — e há uma razão simples para isso: insistimos em combater estruturas transnacionais com ferramentas pensadas para criminalidade local.
Enquanto o Estado opera no século XX, o crime organizado já está consolidado no século XXI.
A geopolítica do crime mudou — e o Brasil não acompanhou
Os números recentes divulgados pela ONU sobre a produção de cocaína são alarmantes: 3.708 toneladas produzidas em 2023, o recorde histórico. Colômbia, Peru e Bolívia jamais produziram tanto. E o Paraguai, por sua vez, reforça sua posição como o maior produtor de maconha consumida no Brasil, respondendo por cerca de 90% do mercado.
Ou seja: as facções brasileiras não apenas consomem, mas intermedeiam e exportam cocaína para a Europa e outros mercados. Tornaram-se atores globais do crime.
Enquanto isso, seguimos discutindo apenas policiamento ostensivo e aumento de penas — medidas necessárias, porém insuficientes quando o inimigo não está apenas nas ruas das grandes cidades, mas do outro lado da fronteira.
Repressão isolada não funciona: o Estado perde no volume
A matemática é cruel: formar um policial é caro, difícil e demora anos. Já o crime organizado recruta jovens em condição de vulnerabilidade em poucos dias — e em massa. O Estado produz especialistas; o crime produz mão de obra barata. E produz rápido.
Insistir em operações pontuais é enxugar gelo. Sem atacar o fluxo internacional, qualquer vitória interna é apenas temporária.
A lição da América Latina: sem cooperação internacional, o crime prospera
A expulsão da DEA da Bolívia é um exemplo didático. Em pouco tempo, o país viu crescer cultivos ilegais e circulação de cocaína. A criminalidade transnacional floresce onde a cooperação internacional murcha.
O Brasil não pode cometer o mesmo erro. Fechar-se em soluções domésticas é ignorar o caráter global do problema.
O que realmente funciona: represar as fronteiras
Há uma alternativa que precisa sair do papel: o represamento prolongado de drogas e armas nas fronteiras. A estratégia é simples, mas poderosa.
Se países produtores não têm condições econômicas ou políticas de reduzir sua produção, impedir o escoamento provoca:
• acúmulo logístico,
• perda financeira,
• colapso operacional,
• desgaste interno dos grupos criminosos.
É o mesmo que abrir a torneira do crime, mas fechar o ralo por onde escorre sua riqueza.
O Mato Grosso do Sul, por exemplo, reúne todas as condições para ser o epicentro de uma operação nacional de represamento — pela posição geográfica, pelo volume de cargas e pela permeabilidade das rotas.
O oxigênio do crime não é a droga: é o dinheiro
Costuma-se dizer que, para eliminar peixes em um aquário, basta tirar o oxigênio. No crime organizado, o oxigênio não é a cocaína: é o lucro.
Nenhuma organização criminosa sobrevive sem fluxo financeiro. Portanto, a estratégia de estrangulamento econômico — controle aduaneiro, rastreamento de transações, corte de insumos e monitoramento logístico — é mais eficiente que qualquer confronto armado.
E não exige inventar nada novo. Basta coordenação.
O Estado precisa pensar grande
É aqui que falta ousadia: o Brasil precisa de uma estrutura central forte, capaz de coordenar inteligência, finanças, política externa e segurança interna. Algo equivalente às estruturas adotadas por países que enfrentam ameaças híbridas — e não apenas criminalidade comum.
O crime opera como multinacional. O Estado precisa responder com o mesmo nível de integração.
A pergunta que incomoda: queremos mesmo resolver o problema?
O país tem hoje conhecimento técnico, experiência operacional e dados suficientes para implementar uma operação nacional de represamento.
Tem condições de criar uma força-tarefa integrada, com comando unificado.
Tem musculatura para buscar apoio internacional e montar um fundo específico para financiar tecnologia, inteligência e logística.
O que falta não é capacidade. É decisão.
Enquanto isso não acontece, continuaremos assistindo ao mesmo ciclo: recordes de apreensão que não reduzem oferta, maior circulação de armas, facções mais ricas e um Estado sempre atrás — e cada vez mais distante — de um problema que se expande além de suas fronteiras.
A escolha é simples
O crime organizado se globalizou.
Nossas políticas públicas, não.
Se o Brasil não se mover para um modelo de represamento nas fronteiras, com foco econômico e coordenação nacional, a guerra nem sequer começará para o lado do Estado.
(*) Edgar Paulo Marcon é delegado de Polícia Federal aposentado, advogado e consultor na área de segurança.
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