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Sobre o sofrimento infantil

Bruno Massayuki Makimoto Monteiro (*) | 09/09/2021 13:30

Como estamos no setembro amarelo, seria interessante discorrer um pouco acerca da temática do sofrimento na infância, já que pode ser uma causa para o suicídio infantil. O assunto é escolhido para aproveitar não só o ensejo do suicídio deste setembro, mas para trazer à luz a questão da infância que nem sempre é tratada, visto que é tida como uma fase angelical e meiga, fazendo com que ideação, tentativa ou o ato de se suicidar sejam tirados do contexto da criança (DA SILVA FILHO; MINAYO, 2021).

Para dar início, importa dar relevo para o que a infância representa no decorrer da vida. Nela, encontramos pureza, dependência, ingenuidade e insegurança perante os mais diversos temas que cercam o indivíduo nos anos primordiais (MOMO; COSTA, 2010 apud AQUINO, 2015). Nesse sentido, a sua transição se dá à medida que o mundo desejado e expectado começa a dar lugar a uma outra realidade (a do mundo real) (AQUINO, 2015).

Tal desconcerto pode-se ser observado na obra clássica da literatura, “Alice no País das Maravilhas” (1865), de Lewis Carroll. Nesta história, há a menina Alice que, ao cair numa toca de um coelho, vê-se num lugar fantástico, com criaturas e aventuras bastante inusitadas. Na obra, entre as mais variadas questões, como as do inconsciente (BIRMAN, 2016), pode-se notar a inquietação de uma menina que hora se vê muito grande, ora muito pequena.  Quando se volta a um olhar mais calmo diante de tal inquietação da protagonista, poder-se-ia pensar que Alice está desgostosa e inquieta com a situação de se perceber com diferentes tamanhos em contextos variados. Essa imagem da altura em descompasso com as situações, como quando ela está muito grande para atravessar a porta ou muito pequena para alcançar a mesa (CARROLL, 2020), simboliza senão a frustração da criança diante de um mundo que não é como ela deseja.

Assim também acontece no filme de Hirokazu Kore-Eda “O que eu mais desejo” (2012). Nele, temos uma história, na qual a protagonista criança deseja que seus pais divorciados reatem seu casamento, pois dessa forma viveriam juntos e felizes. Ao longo do filme, esse seu desejo começa a se desfazer, à medida que compreende que de fato seu pai e sua mãe não dão certo. Ou seja, por mais que ele queira bastante, as coisas não podem ser da forma como ele pensa que o seja. Por mais que isso o deixa entristecido, a maturidade obtida ao longo da trama vai transformando esse sentimento, abrindo espaço para outros menos dolorosos (AQUINO, 2015).

Como observado, tal ruptura não se dá de forma tranquila ou não dolorosa. Muitas vezes, ela pode causar "sentimentos próximos do desespero", embora sejam essenciais para o crescimento pessoal, configurando assim o milagre da vida (KORE-EDA, 2012 apud AQUINO, 2015). No bojo dessa situação de limbo, isto é, uma margem para o início da vida adulta, temos o contexto das crianças em que nele se encontram. Tais menores estão nos mais diversos contextos socioculturais e econômicos, que contribuem, em variadas medidas, nesse meio transicional, já que, em alguns cenários, a infância pode ser intensamente prejudicada ou até mesmo anulada.

É o caso de diversas crianças em cujo contexto os fez adultos antes do tempo (e não apenas precoce, mas desruptivamente violenta). Os intensos afazeres domésticos, delegação de muitas responsabilidades, trabalho infantil, abusos sexuais e negligência parental são algumas das causas para o prejuízo dessa fase (DA SILVA FILHO, MINAYO, 2021). Por exemplo, estão bem documentados casos em que crianças são violentadas sexualmente por familiares próximos e crescem com intenso sentimento de culpa e sofrimento (SOUZA et al., 2009)

Não se procura julgar quem os fez ou os motivos que os levaram, haja vista que tal situação cabe a outras instâncias. O que nos é de interesse, porém, é trazer à baila as razões para o sofrimento desses infantes que são tirados de uma fase de descobertas, aprendizados e possiblidades. Quando, na verdade, poderiam estar em contato as demais pessoas em diferentes idades para trocas de experiências, vivências e brincadeiras, sem encontros nos quais haja coerções e repressões (AQUINO, 2015).

Referências bibliográficas

AQUINO, J. R. G. A infância como solidão: mutações da experiência educacional contemporânea. Educação & Sociedade, v. 36, p. 427-444, 2015.

BIRMAN, J. Inconsciente e desejo na escrita do infantil: uma leitura de Alice no país das maravilhas" e de A travessia do espelho, de Lewis Carroll. Tempo psicanalitico, v. 48, n. 2, p. 47-67, 2016.

CARROLL, L. As aventuras de Alice no País das Maravilhas. EDITORA PANDORGA, 2020.

DA SILVA FILHO, O. C.; MINAYO, M. C. de S. Triplo tabu: sobre o suicídio na infância e na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, p. 2693-2698, 2021.

SOUZA, J. et al. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: editora UFMG, 2009.

(*) Bruno Massayuki Makimoto Monteiro é acadêmico de medicina da UEMS.

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